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Banalidade do mal – Ódio de si?
Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
 

O lançamento do filme Hannah Arendt (2012) dirigido por Margarethe von Trotta1 chamou a atenção para a filósofa Hannah Arendt (1906/1975), uma das figuras maiores do pensamento político ocidental, diríamos mesmo, o maior filósofo político do século XX ignorando a questão de gênero.

Hannah fez sua formação acadêmica antes da guerra com Heidegger, Husserl, Jaspers e ainda muito jovem inicia um relacionamento amoroso com Heidegger2. Judia de origem alemã, nascida numa abastada família em Berlim, emigrou para os EEUU para fugir do nazismo, depois de perseguida e encarcerada num campo de concentração.

Convidada pela revista The New Yorker para cobrir o processo do nazista Eichmann (1961), lançou Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal3, obra que reúne cinco artigos escritos durante o julgamento. Em torno deste livro e das polêmicas por ele levantadas passa-se a ação do filme e Hannah afirma que, mesmo antes de ser publicado, este livro foi controverso e “objeto de uma campanha organizada4. Sendo dos livros mais acessíveis da filósofa, relata o julgamento utilizando-se da transcrição dos trabalhos do tribunal que foi distribuída aos jornalistas em Jerusalém nas versões inglesa e alemã, embora a língua utilizada na corte tenha sido o hebraico.

Hannah cunhou o conceito "banalidade do mal" ao assistir o julgamento de Eichmann, conceito que pode ser melhor compreendido se pensado ao lado da questão do mal colocada no monumental As Origens do Totalitarismo5. Pensadora de seu tempo, neste livro ela analisa os regimes totalitários buscando as características que culminaram na barbárie nazista. Aproximando nazismo e stalinismo enquanto ideologias totalitárias, Arendt demonstra como um regime totalitário depende da banalização do terror, da manipulação das massas, da falta de crítica frente à fala que procede do poder colocando Hitler e Stalin como duas faces de uma mesma moeda. Ela acrescenta:

“(...) se é verdade que, nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis), também é verdade que, sem ele, poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do Mal”6.

O oficial nazista da SS desaparecido depois de 1945, Eichmann, foi raptado pelos israelenses em Buenos Aires, onde vivia tranquilamente com a família como operário da Mercedes Benz. Julgado em Jerusalém por crimes de guerra, crimes contra o povo judeu e crimes contra a humanidade, foi condenado à forca, por seu papel na “solução final” para a questão judaica.

Funcionário do 3º Reich (que deveria durar mil anos) e considerado especialista na questão judaica, de 1941 a 1945 elaborou a logística da "solução final": deportação dos judeus das nações europeias para os campos de concentração e câmaras de gás, maneira humana “de matar” propiciando uma morte misericordiosa, segundo os nazistas7.

Em seu depoimento, Eichmann diz ser o “oficialês” sua única língua, mas, para Hannah,

"(...) o oficialês se transformou em sua única língua porque ele sempre foi (...) incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê (...). Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa"8.

Diante dos depoimentos, Hannah analisa a fala desse homem que, segundo ela, era totalmente incapaz de encarar qualquer coisa do ponto de vista do outro, e embora tendo plena consciência das consequências de suas ações, dedicou-se a seu dever sem pensar nelas, nada considerando acerca do bem e do mal. Os atos eram monstruosos, mas o responsável era um homem comum, que não pensava, apenas agia: o problema do bem e do mal teria relação com a faculdade de pensar, de raciocinar? Ou melhor, com a decisão de parar de raciocinar e de escolher a partir de uma ética? Ele não é retratado como o demônio descrito por ativistas judeus, mas como alguém “terrível e horrivelmente normal”, um típico burocrata que se limitou a cumprir ordens com muito cuidado e amor ao dever.

A perspectiva apresentada no livro, não apenas a questão da "banalidade do mal", mas a pretensa "cumplicidade" das lideranças judaicas com os nazistas (que valem uma discussão à parte), provocaram críticas virulentas das organizações judaicas e de amigos judeus como Hans Jonas, levando à ameaça de exclusão da autora de seu cargo na universidade. "Desde que o papel da liderança judaica veio à baila no julgamento, e desde que eu o comentei, foi inevitável que ele fosse discutido"9.

No entanto, o conceito "banalidade do mal" foi mal compreendido e criou (ainda cria) polêmicas das quais Arendt jamais se furtou.

A contradição entre os desmesurados crimes e a superficialidade do personagem que pretendia ter realizado apenas um trabalho de acordo com seu dever, saltou aos olhos da filósofa; o “homenzinho” usou clichês até na hora da morte. Uma tarefa lhe fora atribuída e deveria ser cumprida, modo bastante enviesado de observar o imperativo categórico kantiano10, segundo o qual ele afirmou viver.

Para Hannah, o uso que ele fez de tal imperativo, que era fazer coincidir sua vontade com a lei universal, não deixou que ele percebesse que a vontade que estava em jogo era a do Führer. O mais trágico era que, na "(...) realidade, a situação era tão simples quanto desesperada: a esmagadora maioria do povo alemão acreditava em Hitler"11.

Longe do ser demoníaco que se esperava, apresentou-se ao julgamento um ser sem consistência, superficial, e mesmo com todos os esforços dos promotores, foi impossível não perceber que o homem "não era um 'monstro', mas era difícil não desconfiar que fosse um palhaço12”.

Ações de puro horror executadas por um homem normal é uma atrocidade terrível, visto permitir a suposição de que qualquer um possa cometer crimes nas mesmas circunstâncias, sem saber ou sentir que pratica o mal. Eichmann não era estúpido, era apenas um homem cuja "ausência de pensamento" tornou-o um dos maiores criminosos do século XX. Isso, no entanto, não o transforma num fenômeno normal, comum, não se trata de acreditar que qualquer pessoa possa chegar ao ponto de executar os atos cometidos pelo nazista da “solução final”: o conceito "banalidade do mal" não afirma que Eichmann fosse um homem como todos os outros ou que qualquer outro ser humano seria potencialmente um criminoso como ele, pois esta afirmação fundaria a irresponsabilidade numa culpabilidade coletiva, isentando o indivíduo. Hannah afirma:

“(...) quando falo da banalidade do mal, falo num nível estritamente factual, apontando um fenômeno que nos encarou de frente no julgamento. Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo III de se ‘provar um vilão’” (...) Ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo”13.

Não sendo possível transformar Eichmann em um demônio, também não é possível considerar sua prática como um lugar comum. Os crimes ocorreram dentro de uma ordem “legal”, ele afirmou todo o tempo agir cumprindo ordens superiores, mas espera-se que os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado, embora se possa observar que na Alemanha nazista não havia regras para o inaudito, havia sim, uma confusão sobre questões elementares de moralidade.

"Banalidade do mal" é o nome do problema que carrega a pergunta: como entender que o horror dos campos de extermínio não tenha sido produzido por uma vontade expressa de fazer o mal, mas de uma mistura de inteligência estratégica e vazio moral? Isso, diz Hannah, sem apagar outras formas de mal já conhecidas, acaba, no entanto, por desclassificar formas anteriores de mal. Aristóteles lembra na Ética a Nicômaco que o homem é um animal racional e a ética é fruto da racionalidade incidindo sobre a animalidade.

Nos campos de extermínio havia uma dominação total: as pessoas foram privadas de sua personalidade jurídica, moral e individual, arrancadas de suas casas, separadas das famílias, dos amigos, tornaram-se famintas e eram identificadas por um número e uma estrela amarela. Desenraizadas, a resistência se tornava praticamente impossível.

Um ponto essencial deve ser considerado no "mistério nazista", sobre o qual tanto já se teorizou: como explicar que a "solução final" (extermínio do povo judeu) tenha sido um segredo de Estado, sabendo-se que milhares de agentes foram mobilizados e suas ações foram coordenadas e dirigidas para esta finalidade? Ao que parece, parte deste segredo está no "... colapso moral que os nazistas provocaram na respeitável sociedade europeia - não só entre os perseguidores, mas também entre as vítimas"14.

A questão moral, que mobiliza os psicanalistas e levou Lacan a teorizar sobre a ética do desejo, é presença constante nos relatos diuturnos dos pacientes. Violência e crueldade não são ausência na clínica, e Freud no Mal Estar na Civilização reitera Hobbes dizendo que o homem é o lobo do homem e que as pessoas preferem negar que “(...) o ser humano não é uma criatura branda, (...) mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. (...) o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo”15.

A grande questão é que o mal, como Freud o descreve, é inerente ao homem, há o “ódio estrutural” que participa da construção subjetiva, como podemos ler no texto de Rodrigo Lyra e Carlos Camargo Ódio, um sentimento lúcido.16 E, como observa Hannah Arendt, há necessidade de refletir e, por que não, também conversar sobre as ações e suas consequências, pois o contrário pode gerar uma distância e um desapego tal do laço social, que afasta do campo da ética, gerando a “banalidade do mal”.





1 https://www.youtube.com/watch?v=qeGg-ZwkCTA
2 "A relação (entre Hannah e Heidegger) pode ser dividida de maneira aproximada em três fases: de 1925 a cerca de 1930, enquanto os dois eram amantes; dos primeiros anos da década de trinta (Heidegger filiou-se ao Partido Nazi em 1933) até 1950, quando as vidas de ambos mudaram radicalmente com a subida ao poder do nacional-socialismo e a II Guerra Mundial; e de 1950 a 1975, quando reataram por iniciativa de Arendt a sua antiga relação — ou antes, criaram uma nova — que durou até à morte de Hannah Arendt.” ETTINGER, E. In Hannah Arendt e Martin Heidegger. Tradução: Isabel Castro Silva. Portugal: Ed. Relógio D´Àgua, 2009.
3 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém - Um Relato Sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
4 Idem. Ibidem, p. 305.
5 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo – Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Cia. De Bolso, 1951 (1ª publicação).
6 Idem. Ibidem, p. 7.
7 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém - Um Relato Sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 124.
8 Idem. Ibidem, p. 62.
9 Idem. Ibidem, p. 307.
10 KANT, I. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Edições e Publicações Brasil Ed., 1967.
11 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém - Um Relato Sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 114.
12 Idem. Ibidem, p. 67.
13 Idem. Ibidem, p. 310.
14 Idem. Ibidem, p. 142.
15 FREUD, S. "O mal estar na civilização" (1930). In Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de Paulo C. Souza. São Paulo: Cia das Letras, vol. 18, 2010.
16 Ver o texto de Rodrigo Lyra e Carlos Camargo, “Ódio, um sentimento lúcido”. In Ódio, Segregação e Gozo. Org. Marcus A. Vieira e Romildo do R. Barros. Rio de Janeiro: Subversos, 2012, p. 83 a 94.

   
 
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