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O cartel é um dispositivo criado por Lacan na fundação de sua Escola1. Esse dispositivo é colocado num lugar que não é um lugar qualquer, e sim um lugar privilegiado. O cartel está na entrada da Escola. Trata-se de uma dobradiça, algo entre o interno e o externo. Quatro pessoas mais Um se juntam para a realização de uma tarefa. Esse Mais-um, pode ser qualquer um, mas tem uma função específica no grupo: a função de descompletá-lo, evitando assim os efeitos de identificação que são comuns nos agrupamentos humanos. Nesse sentido, ele também propõe que um cartel tenha uma duração pré-estabelecida de no máximo dois anos.
O Mais-um é alguém que não deve ocupar um lugar de mestria, ou de suposto saber. Se há algo que o Mais-um precisa saber é sobre o próprio funcionamento do dispositivo. Mesmo que ele seja procurado pelos outros quatro a partir de uma suposição de saber a respeito de um tema a ser pesquisado, ele deve estar avisado de que é exatamente esse o lugar que ele não pode ocupar. Cabe ao Mais-um manter o S(Ⱥ), deixar aparecer o furo no saber, para que assim, a partir do desejo de saber, cada um possa se colocar a trabalho, produzindo um saber que lhe seja próprio, sua elaboração sustentada.
Então, "ao encontrar o Ⱥ, o sujeito toma a seu cargo a produção de um saber"2. Não um saber suposto no Outro, mas um saber produto de seu trabalho, a partir de uma dessuposição de saber ao Outro.
Se o que move uma análise é o trabalho de transferência, no cartel Lacan aponta para uma transferência de trabalho. "Se no trabalho de transferência a causa é colocada no Outro, na transferência de trabalho se trata de causar o trabalho dos outros. Corresponde à passagem do amor ao saber ao desejo de saber, da suposição à exposição de saber"3. Assim, na transferência de trabalho há lugar para o trabalho de cada um, a seu próprio estilo. Não há Um mestre a quem os cartelizantes possam se identificar, evitando a pura duplicação de cópias.
Penso que se estamos falando de amor e de desejo, necessariamente estamos incluindo aí a libido. E é a partir desse ponto que coloco uma questão: como pensar o uso da tecnologia nos encontros do cartel? Haveria necessidade de que esses encontros se dessem em presença dos corpos?
Não resta a menor dúvida de que programas como o skype ou chamadas de vídeo pelo WhatsApp facilitam muito os encontros virtuais entre as pessoas, e que no caso dos cartéis, possibilitam que interessados em um tema, que estejam em regiões totalmente díspares, possam se agregar e discutir questões de seus interesses. Nesse sentido a tecnologia é um facilitador.
Na minha experiência em alguns cartéis que fizeram uso da internet de maneiras distintas, consigo perceber um ponto em comum: quando o encontro se dá presencialmente, com os corpos, há um algo “a mais”. Acontece um entusiasmo maior, a discussão é mais acalorada, mais empolgante, contagiante. Penso que seja algo da ordem de uma vivificação. E é a partir desse “a mais” que acontece em presença dos corpos, que interrogo qual a relação disso com o gozo. Se estamos falando em amor e em desejo, será que não podemos incluir aí o gozo?
Mas, se o gozo é algo que faz barreira, que impede o desejo, por que penso em incluir nessa reflexão o gozo justamente quando afirmo que, em presença dos corpos, acontece um “a mais” na discussão em cartel?
Por associação livre, o que me ocorre é o aforismo de Lacan: "Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo"4. E ele diz que é o amor enquanto sublimado que faz essa função.
Assim, o amor está entre o desejo e gozo. O amor enlaça o gozo para que algo do desejo possa surgir. E se é preciso um corpo para gozar, penso que é na confrontação dos corpos em presença e não virtualmente que isso pode se dar. E quando falo dos corpos não estou pensando em um organismo, mas num corpo pulsional.
Se no trabalho de transferência temos o amor ao saber suposto ao Outro, esse amor pode enlaçar o gozo, gozo esse sempre autístico, gozo no corpo próprio, para que algo do desejo possa surgir. O desejo de saber que aparece na transferência de trabalho seria acessível a partir do amor, mas não sem passar pelo corpo.
Mas qual a diferença? O corpo não está ali presente em uma chamada de vídeo? Afinal posso ver sua imagem, posso ouvir sua voz... Penso que em uma chamada de vídeo não há a presença do corpo do Outro. Temos a imagem do corpo do Outro projetada em uma tela e a voz, transmitida por um alto-falante. Esses objetos fazem função de anteparo entre os corpos dos envolvidos no processo.
Na divisão significante do sujeito, Lacan coloca o sujeito do gozo – se pudéssemos dizer que existe um sujeito do gozo – como algo mítico, que antecede todo o jogo da operação da divisão significante. O gozo não conhece o Outro, senão através do resto, a. Ao final da operação temos o sujeito barrado, que é suporte de desejo, e o objeto a, que é um resto irredutível, e não há nenhum modo de operar com ele.
O objeto a é o que resiste a qualquer assimilação à função do significante, se apresentando sempre como perdido, como o que se perde para a “significantização”.
"É justamente esse dejeto, essa queda, o que resiste à significantização, que vem a se mostrar constitutivo do fundamento como tal do sujeito desejante – não mais o sujeito do gozo, porém o sujeito como aquele que está no caminho da sua busca, a qual não é a busca do seu gozo. Mas é ao querer fazer esse gozo entrar no lugar do Outro, como lugar do significante, que o sujeito se precipita, antecipa-se como desejante"5. "O objeto cai do sujeito em sua relação com o desejo"6.
Ao incluir no cartel o gozo, o circuito pulsional de cada um, penso que incluímos o sintoma. O sintoma como a singularidade de cada um dos membros do cartel. “Um desejo inédito é um desejo esvaziado de gozo, esvaziado do gozo autista, para acolher o gozo de outro sujeito e passar de um inconsciente feito de 'uns sozinhos' a um inconsciente transferencial, no qual os significantes estão emparelhados e uma significação de gozo pode ser condensada7". E com isso retomo o início de minhas elucubrações.
Ao propor uma lógica para o funcionamento dos cartéis como algo que quebraria a lógica de funcionamento de um grupo, como seria de se esperar de um grupo de estudos, por exemplo, o que Lacan está dizendo? Penso que ele propõe que cada um possa participar ao seu modo, com o seu sintoma, com o seu gozo. A lógica do grupo, onde uma das premissas é a identificação imaginária, poderia levar à exclusão do diferente, do singular. E, no entanto, todas as diretrizes dadas por ele na criação desse dispositivo, é exatamente uma tentativa de quebrar o que está dado desde Freud na Psicologia das Massas, do funcionamento dos grupos como algo que chega à segregação do diferente.
Mas afinal, quais as implicações dessas minhas divagações com o uso ou não da tecnologia para os encontros do cartel?
Penso que estão articuladas. Como já afirmei, a internet facilita muito o encontro entre pessoas que estão distantes fisicamente, mas que têm um interesse em comum. No entanto, tento defender a hipótese de que não podemos prescindir da presença do corpo vivo, do corpo pulsional nesses encontros.
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