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Psicanálise: do que estamos falando?
Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri

Em “O Banquete dos analistas”, Jacques-Alain Miller observa que "a psicanálise é algo demasiado sério para ser confiado somente aos psicanalistas"1. É preciso falar de modo inteligível, transmitir o que a psicanálise ensina para além dos muros da cidadela psicanalítica. Uma formalização se faz necessária, a Psicanálise é um novo saber que explodiu no mundo num momento crucial (o esgarçamento da metáfora paterna), mas não se abriga sob qualquer categoria conhecida.

Um banquete, na tradição dos antigos atenienses – como o Banquete (Symposium) de Platão – é uma conversação que se desenvolveu no berço da democracia, onde cada cidadão tinha livre acesso à palavra, colocava suas questões, seus argumentos, trazia sua contribuição à discussão, na tentativa de circundar um saber.

Miller propõe um banquete com questões em torno da Escola de Lacan, com seus gradus e hierarquia, o passe e sua ligação com o conceito de Escola, não esquecendo os problemas acarretados pelos efeitos de grupo. A proposta surge em meio a uma crise na Escola e os temas englobam a questão política.

No conceito de Escola há distinção entre gradus e hierarquia: a Escola se compõe de membros iguais no que tange ao poder, mas apresenta os gradus de AE e AME (sendo AP uma autodeclaração), além da hierarquia administrativa. Longe de ser simples tal conceito, percebe-se que as crises fazem parte da estrutura de uma Escola fundada sob a égide do movimento em direção à época da qual faz parte, do psicanalista em conexão com a sua época.

Quem lê com atenção o “Ato de Fundação” e a “Proposição de 9/10/1967 sobre o psicanalista da Escola” vê que aquilo que Lacan menos busca ao fundar sua escola é a paz das pirâmides, a tranquilidade dos túmulos.

Nos capítulos 21 (O Passe) e 22 (O Fim de análise) do livro em pauta, vemos Miller elevar a discussão travada por ele desde o início, numa dialética ao modo hegeliano sem jamais apelar para uma síntese, pois a cada tentativa desta, novas questões se apresentam o que vai sempre deixar em aberto algo como uma síntese final.

Fica saliente nos capítulos abordados a “ambição científica da psicanálise”2, que foi uma ambição de Freud, mas também de Lacan. Que lugar dar a tal ambição na Escola? Miller aponta para o final-de-análise e seu depoimento, o passe, como um encaminhamento em direção a uma ciência. Mas não se trata de qualquer ciência. Dizer que Psicanálise é Psicanálise é uma tautologia que nada acrescenta.

A pergunta seria “... por que um sujeito não poderia formalizar, comunicar, falar, até escrever o que uma análise lhe ensinou?”3, ou seja, o que se pode traduzir como uma “modificação subjetiva” pela qual passou em sua análise, sendo o passe um convite para “transformar a experiência em material para uma elaboração de saber”4.

Em outra ocasião, Miller surpreende5 ao dizer que “tudo começa sem ser destruído para ser levado a um nível superior”, “Ano Zero”, novo começo para o Campo Freudiano, aufhebung hegeliana que levaria à “Escola-Sujeito”.

A dialética hegeliana pressupõe conservar o que existe para superá-lo, num movimento de espiral ascendente. Quando determinado momento do Espírito Universal gera contradições, a dialética as absorve, o que possibilita o advento de um novo momento. O espírito de nosso tempo está prenhe de contradições e Miller propõe um movimento dialético na Escola de Lacan, conservando o que existe para elevar-se a um nível superior: o “Ano Zero” da Psicanálise que inclua a “Escola-Sujeito”.

Para Lacan, é "melhor pois que renuncie (à prática analítica) quem não possa unir a seu horizonte a subjetividade de sua época"5 . Para ele, não sem inspirar-se em Hegel, cada época tem sua subjetividade, o que implica em que a mentalidade, a vida social, intelectual e cultural têm em comum o mesmo espírito; a época é um limite não ultrapassável, constrange o pensamento e mesmo quando saltos ou antecipações ocorrem, há coerência no conjunto. Agrega-se a tal conjunto a noção “da” subjetividade e não de “uma” subjetividade, porque o sujeito não é o indivíduo. O conceito lacaniano de sujeito supõe o “inconsciente estruturado como uma linguagem” e remete à política. Como afirma Lacan, “o inconsciente é a política”.

Ao falar da "realidade transindividual do sujeito", Lacan demonstra que a subjetividade de uma época tem sentido por ser transindividual e, desse ponto de vista, cada um é igual a um outro, um e outro são prisioneiros da mesma época, imersos que estão na mesma dialética temporal.

Ao falar do final de análise como ascese subjetiva do analista, Lacan diz que: "nunca seja interrompida, pois o final de análise didático não é separável da entrada do sujeito em sua prática", sendo este o esboço do que será o passe e de um final de análise que coloque em ato o que se adquiriu na análise.

Na experiência analítica, o sujeito trabalha e ao analista sobra a preguiça. No entanto, a Escola acolhe os analistas como “trabalhadores decididos” e a questão é fazer o analista passar da preguiça que o caracteriza enquanto tal e faz o analisante trabalhar, para o trabalho. De santo, como Lacan cogita em Televisão6, a trabalhador. O conceito de "transferência de trabalho" foi introduzido no momento da fundação da Escola de Lacan. No amor de transferência, o amor faz trabalhar o saber inconsciente; trata-se de amor ao saber. Mas no caso da transferência de trabalho, trata-se do desejo de saber, de "trabalhadores decididos" que vão contra a ignorância, no sentido do recalque, ou seja, há uma transmutação de amor em desejo.

Examinando o sujeito que a análise produz e sendo o analista resultado de uma análise, o final de análise atestado pelo passe engloba a pergunta sobre o que é um analista, o que encaminha no sentido de se reclamar um estatuto científico para a psicanálise, não esquecendo que o analista está imerso na subjetividade de sua época.

O "desejo do analista", instrumento da psicanálise, não pode refugiar-se no indizível; o final de análise não é uma mística embora o passante deva testemunhar algo do real que não pode ser inserido no simbólico. O final de análise tem a ver com o furo, mas é preciso observar que aquilo que Lacan chamou “passe” tem relação com o indizível, o que permite obter o testemunho da prova do furo.

“Tudo consiste em saber se é possível passar do indizível ao matema, ou se permanece a fascinação do furo; e se alguém se faz de distraído, quando justamente se trata de elaborar o que se pode dizer disso e transmiti-lo"7.

Lacan diz na “Nota Italiana” que “Não há analista a não ser que o desejo de saber lhe surja” e falar de um final de análise em termos de liquidação da transferência ou da queda do sujeito suposto saber, conduz o sujeito a uma solução via identificação8”. O que está em jogo é a transferência e não a identificação. Quando cai a causa do horror ao saber, a causa da castração, em seu lugar emerge o desejo de saber, quando então a consequência da queda deve ser demonstrada no passe.

O final de análise não liquida o saber, pois é o momento que, em relação ao saber, se passa do amor ao desejo. Se o passe está além do amor ao saber, não está além do saber, pois dá início a um desejo de saber que provoca um trabalho visando a produção de saber, visando a passagem do saber de um estado de suposição para um estado de exposição.

O AE, ao ser nomeado, se faz autorizar e isso supõe um reconhecimento da Escola fundado em sua demanda de passe, que é uma demanda de garantia e de querer manter viva a Escola, trabalhar para ela, fazer-se seu escravo. A Escola só pode construir-se com o esforço de trabalhadores decididos, animados pelo desejo de saber. Desse modo, o procedimento do passe ao testemunhar o final de análise não termina com a nomeação, mas põe em jogo a transmissão de um saber adquirido na análise.

Articular o não saber inaugural do sujeito em início de análise e o saber no final parece ser uma das intenções do passe, pois como Miller afirma, a psicanálise não é a mística do não-saber. O não-sabido se ordena como o marco do saber, sendo o final de análise um momento de verdade e da possibilidade de saber algo sobre esta. O desejo de saber é um critério para reconhecer o analista, mas é preciso ainda buscar as provas da transformação do sujeito; necessário se faz saber se ele quer o que deseja e se produz ou não um desejo de saber.

Pode-se pensar que o término da análise remete ao Inconsciente Real, mas que o Inconsciente Transferencial jamais é liquidado, pois o passe é um pedido dirigido à Escola e deve ser feito em termos simbólicos. Esse movimento pode ser demonstrado no passe, o que remete à formalização e a possibilidade de colocar a Psicanálise, diferente de qualquer outra, como ciência absolutamente nova.



1 MILLER, J-A. El Banquete de los Analistas (Curso ministrado de novembro de 1989 a junho de 1990 - Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII - Seção Clínica.) Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 158.
2 Idem, Ibidem, p. 380.
3 Idem, Ibidem, p. 378.
4 Idem, Ibidem, p. 379.
5 http://eolcba.com.ar/newsletter/curso-de-jacques-alain-miller-24-de-junio-de-2017/?frame=0. LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 322.
6 LACAN, Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
7
MILLER, J-A. El Banquete de los Analistas. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 158. Idem. Ibidem, p. 129.
8 Idem. Ibidem, p. 175.

   
   
 


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