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Miller aponta uma virada de Lacan quanto à articulação entre verdade e saber marcada, especialmente, pelos textos “A ciência e a verdade” e “Nota italiana”. Esta mudança de rumo tem especial importância no que diz respeito à relação entre psicanálise e ciência.
O recorte que me proponho a fazer a partir destes dois capítulos de O banquete dos analistas1 destaca como Lacan desenvolve em seu ensino as relações da psicanálise com a ciência; em particular, busco pensar como se situa a política lacaniana atual no que tange à ciência. Retomo os dois textos de Lacan, já mencionados, para abordar estes dois polos indicados por Miller.
Em “A ciência e a verdade” Lacan afirma: “(...) é impensável, por exemplo, que a psicanálise como prática, que o inconsciente, o de Freud, como descoberta, houvesse tido lugar antes do nascimento da ciência (...)”2. Psicanálise e ciência se aproximam por meio do sujeito, um “correlato” essencial da ciência, termo utilizado por Lacan para assinalar a vocação de ciência da psicanálise.
Este correlato remete à constituição cartesiana do sujeito que implica um “rechaço de todo saber”. Contudo, ressalva Miller, para Lacan, em “A ciência e a verdade”, o sujeito inaugurado pela ciência acaba por ser velado por ela. Trata-se de uma crítica da sutura do sujeito na ciência. Caberia à psicanálise, no contexto desta primeira fase do ensino de Lacan, questionar o que a ciência forclui e, ao psicanalista, extrair da ciência a verdade velada na civilização contemporânea.
A virada de Lacan, no sentido de definir o inconsciente como verdade para considerá-lo um saber, é marcada por Miller em duas passagens dos textos em questão. Em “A ciência e a verdade”: “(...) digo o verdadeiro sobre Freud, que soube deixar, sob o nome de inconsciente, que a verdade falasse”3; e em “Nota italiana”: “O saber do inconsciente designado por Freud (...)”4. Quais são as implicações de tal mudança de rumo nas relações da psicanálise com a ciência? Miller afirma que “esta relação é completamente distinta”, na medida em que se vislumbra um saber no real. Em “Nota italiana” não se trata mais de a psicanálise questionar a ciência, mas de se igualar a ela, em certo sentido, na medida em que a ciência aponta ao saber no real. O contexto é o da valorização do matema, do desprendimento da palavra e de um acento sobre o “escrever”, escrever este que depende da forma lógica do saber científico.
A problemática é acompanhada pela fórmula “não há relação sexual”: que a relação sexual seja impossível de escrever depende de uma demonstração que requer a forma lógica do saber. “Repentinamente, a psicanálise já não tem que questionar a ciência, mas localizar-se em sua Escola, na medida em que a ciência aponta ao saber presente no real e a psicanálise apontaria à verdade no saber, ou mesmo no real”, conclui Miller.
A BBC Brasil veiculou, em 10 de agosto deste ano, a seguinte notícia: “Cientistas brasileiros criam programa para diagnosticar esquizofrenia e transtorno bipolar através do relato de sonhos”. De acordo com a matéria, os cientistas desenvolveram formas de medir computacionalmente certos sintomas, transformando a sequência de palavras do discurso na representação matemática denominada grafo. O trabalho rendeu vários artigos científicos, dentre eles um que demonstra que a estrutura da linguagem medida por grafos em pessoas com psicose está correlacionada a aspectos neurais medidos por ressonância magnética anatômica e funcional.
Não têm sido poucos os neurocientistas que, ao invés de contestarem a psicanálise, tentam provar, pelo método científico, as teses psicanalíticas, sob o slogan “Freud está de volta!”. Mark Solms, criador da “neuropsicanálise”, talvez seja o principal expoente desta tentativa de localizar os conceitos freudianos no sistema nervoso central. Como entender este fenômeno diante das questões ora levantadas a respeito das relações entre psicanálise e ciência?
Miquel Bassols5 menciona certa “deriva” da ciência atual que estende os pressupostos da ciência a todo o âmbito do humano, ideologia reducionista encontrada nos campos da genética e da neurociência. Chama este reducionismo, a partir da psicanálise, de “fantasia da época”. Lembra que a primeira teoria neurológica delirante foi a expressa no Projeto para uma psicologia científica, abandonada por Freud ao se dar conta de que era um delírio supor que a linguagem e a representação da linguagem estariam inscritas nas redes neuronais. Portanto, vários cientistas atuais estariam numa posição pré-psicanalítica.
É preciso, assim, alerta Bassols, diferenciar duas correntes nas neurociências: aquela que pensa poder localizar as funções subjetivas em alguma parte do cérebro e outra – com a qual a psicanálise pode dialogar – que está descobrindo a impossibilidade de efetuar tal localização. Haveria um “real” de certa parte da ciência que crê na existência de um saber já inscrito no real genético e neuronal, e outra cuja ideia de real se aproxima àquela da psicanálise.
Seria viável, então, pensar que, ironicamente, a psicanálise pode verdadeiramente dialogar com a ciência que não pretende provar as teses psicanalíticas? Estamos efetivamente conduzindo esse diálogo? Quanto à corrente científica que busca o reducionismo dos preceitos psicanalíticos à biologia, caberia à psicanálise questioná-la, como queria Lacan na primeira fase de seu ensino?
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1 MILLER, J.-A. El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, 2010, capítulos XIX e XX, El saber y la verdad (I) e El saber y la verdad (II), pp. 331 a 363.
2 LACAN, J. “A ciência e a verdade”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 871.
3 Idem, p. 882.
4 LACAN, J. “Nota italiana”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 315.
5 BASSOLS, M. “As neurociências e o sujeito do inconsciente”. In: Opção Lacaniana online nova série. Ano 6, número 17, julho de 2015. |
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