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Terrorismo: uma nova aliança com o gozo?
Ondina Machado

Nosso cartel "Islamismo, política e psicanálise"1 vem estudando diversos textos que tratam do Islã, do terrorismo islâmico, da mulher no Islã e contribuições de analistas do Campo Freudiano ao tema. Escolhi uma tese de Enric Berenguer2 que me pareceu interessante e importante. Resolvi testá-la e é isso que apresento a vocês.

A tese é: "a maior parte das pessoas implicadas nos atos terroristas são sujeitos plenamente de nossa época. Estão completamente atravessados pelo discurso capitalista e suas exigências, ocidentalizados, vivam onde viverem".

Miller expressa o mesmo atravessamento dizendo tratar-se de "universos de discurso outrora separados e estanques, que agora se comunicam"3. A rede de computadores é, hoje, responsável por esse acesso a realidades políticas, sociais, culturais e econômicas as mais diversas, promovendo a imbricação de mundos tão díspares. Que mundos são esses?

De modo geral, podemos dizer que o ocidente matou Deus e vive, nos dias atuais, suas consequências. A religião cristã, na sua vertente majoritária, se divide atualmente entre a fé em Deus e os desatinos de sua Igreja e seus representantes: pedofilia, escândalos financeiros, corrupção. O mundo islâmico, como veremos adiante, também tem suas diásporas, porém mantém–se "submisso ao Um da tradição islâmica"4, sem intermediação: não há uma organização central que dite normas e nomeie representantes5. Os fiéis lidam diretamente com Alá. Mesmo o livro sagrado islâmico reforça esse Um: o Alcorão é a palavra de Alá recitada por Maomé. Apenas para comparar, a Torá teria sido escrita por Moisés e a Bíblia por mais de 40 autores durante mais de mil anos, todos inspirados pelo divino.

Considerações iniciais
A religião é uma "experiência compartilhada"6, uma questão de herança que inclui o sujeito em uma comunidade de crenças e tradições. Ela dá sentido ao que não tem e, desse modo, cumpre uma função social e subjetiva. Mesmo que haja uma ruptura com a tradição, a filiação se encarrega de manter um laço de pertencimento.

Seguindo diversos outros autores, Berenguer afirma que os jovens ligados ao terrorismo, em sua grande maioria, não são islamitas tradicionais, mas convertidos. Em geral são filhos de imigrantes muçulmanos, já nascidos e criados no ocidente, que se reconvertem para se ligar a grupos terroristas. Existem também aqueles que pertencem a outras religiões e até mesmo os que não mantêm nenhum tipo de laço religioso. Essas características fazem com que a relação com a religião seja diferente dos que estão totalmente imersos em comunidades islâmicas, que vivem a religião e a cultura de forma cotidiana. Os jovens que se ligam ao Estado Islâmico, por exemplo, parecem ter características bastante comuns aos jovens ocidentais de mesma idade, são considerados "problemáticos", revoltados com a família, alguns usuários de drogas e, mesmo os que derivam de famílias muçulmanas, não seguem os preceitos religiosos tradicionais. O que mais nos surpreendeu foi a grande incidência do fenômeno da conversão entre esses jovens, muitas vezes feita pela web e, em alguns casos, dias antes de cometerem os ataques.

A conversão

Aqui acompanhamos Miller quando, evocando Houellebecq, nos adverte que o Islã é o oposto do islamismo. O último termo está, atualmente, mais ligado ao terrorismo com justificativa religiosa do que propriamente à tradição islâmica. A referência à Houellebecq nos interessa porque, em seu livro Submissão7, ele nos apresenta um ocidente ficcional, dominado pelo islamismo, no qual a conversão tem caráter pragmático, servindo para assegurar a paz civil, a segurança de bens e o emprego.

Por outro lado, Edgard Morin8 considera que na França, por exemplo, boa parte dos jovens de origem muçulmana não se sentem franceses. Ele argumenta que as conversões podem ser uma resposta a isso, pois se não se pode ser verdadeiramente um francês, pode-se, no entanto, se tornar, pela conversão, um verdadeiro muçulmano.

Nossas pesquisas mostram que, no terrorismo, a conversão é um fato que não pode ser desprezado. Ela corre por fora da tradição, sem o apoio de uma comunidade que sustente a crença e trate, simbolicamente, as questões com as quais os jovens se deparam por estarem vivendo em uma sociedade laica, muitas vezes hostil à sua religião e à sua cultura. Na França, quatro mil jovens ao ano se convertem ao Islã; além desses, existe um movimento intenso de reconversões, ou seja, jovens mulçumanos de diferentes etnias que retornam ao Islã pela vertente mais radical.

O choque
A tese de Berenguer denota que o ocidente estendeu seus valores laicos a povos que tinham, e ainda têm, na religião islâmica seus alicerces. Mas o que, me parece, mais grave, é quando o autor cita o capitalismo como meio pelo qual se deu essa invasão. Para entender o alcance disso precisamos distinguir o capitalismo como prática econômica e o discurso que sustenta essa prática. O discurso capitalista promove uma ética que pauta um estilo de vida, um certo tipo de laço social que localiza um modo de gozo9.

Apresento o discurso capitalista como Lacan o escreveu em 1972 e o comparo ao o discurso do mestre, que considero dominante no Islã. Tentarei, com isso, delimitar pontos de ruptura que nos sirvam para pensar as consequências dessa invasão.

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O discurso capitalista (DC), diz Lacan, é o discurso do mestre (DM) ligeiramente modificado. Porém essa modificação muda tudo – "uma mutação capital que [...] confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista"10.

Destaco dois pontos dessa citação: a "mutação capital" e o "estilo capitalista".

Vejamos:

1. Há uma inversão do lugar do sujeito e do significante mestre: onde estava o S1 no DM está o $ no DC, e onde estava o $ no DM está o S1 no DC. Portanto, quem ocupa o lugar do agente no DC é o capitalista, mesmo lugar ocupado pelo significante-mestre no DM.

2. Temos também uma modificação nas setas: no DM a relação entre o $ e o objeto não é direta, ela se dá apenas mediada pela fantasia. Já no DC esta relação está franqueada, o sujeito, como agente do discurso do capitalista, portanto, o capitalista se beneficia diretamente do objeto.

3. No DM há um vetor que marca a relação direta do agente, S1, com o outro, S2. No DC essa relação é atravessada pela ligação do $ com o objeto.

4. No DM há um significante, S1, que representa o mestre para outro significante. No DC é o próprio capitalista, como sujeito, quem ocupa o lugar do agente do discurso, portanto, não há representação. Ao ocupar, como sujeito, o lugar do S1, o capitalista faz semblante de mestre, ou, como diz Lacan, há uma "troca de senhor"11; ele usufrui do prestígio do mestre sem promover nenhuma produção subjetiva, apenas a produção de bens de consumo da qual ele mesmo se beneficia pela mais valia.

5. No DM o lugar do outro é ocupado pelo S2, portanto, há nele um saber que vai incidir sobre o S1 questionando o agente como semblante de mestre. No DC o outro é reduzido ao seu gozo, nele não há saber que ressignifique o agente, que promova uma dialética.

Quais consequências podemos deduzir da incidência do DC sobre o DM?

Parto da premissa, a ser discutida aqui, de que o Islã se assenta no DM tendo a palavra de Deus como seu S1. A principal justificativa é o próprio Alcorão. Ele é a palavra de Deus: Alá ordena a Maomé que a recite – Coran! Recita!

O Alcorão, as Sunas e as Hadites são os fundamentos da religião islâmica e, em alguns países, os fundamentos do direito e da política.

O Alcorão é a palavra de Deus, as Sunas são os feitos e dizeres do profeta, as Hadites formam um corpo de leis, lendas e histórias sobre Maomé que justificam suas ações. As Hadites não são unanimidade entre as diversas vertentes da religião islâmica; é sobre elas que recaem as maiores desavenças com relação ao que é ou não ser um fiel. Cada grupo religioso privilegia ou desabona uma Hadite por considerar ser uma mais genuína que outra.

Nesse aspecto, talvez mais do que em outros, vemos clara a presença do tribalismo do primitivo Islã. A unificação dos povos pré-islâmicos, em geral nômades, em torno da palavra de Alá, foi fator essencial ao desenvolvimento da região. Até então, a falta de um Deus único que falasse a seus fieis em árabe era entendida como fator de fragilidade diante dos invasores. O Alcorão entrou como ponto de união, enquanto as Hadites, por serem os ensinamentos do profeta, passaram a representar a discórdia sobre a sucessão de Maomé após sua morte. Porém, mesmo com algumas dissensões, tem-se um corpo mais ou menos homogêneo que orienta e sustenta, não só uma religião, mas um modo de gozo inscrito na cultura. Oliver Roy ressalta que "o fanatismo é a religião que não tem cultura"12, os jovens privados da cultura constroem um Islã reduzido à normas e slogans fora do contexto cultural associado à religião. Esta é uma característica importante, pois no caso do Islã cultura e religião não se separam, como nosso cartel vem observando. Mais um fator que dimensiona a força do laço que a religião islâmica faz e que nos faz calcular a importância dele para essa comunidade.

Penso ser sobre a palavra de Alá que incide o DC, um novo mestre que incita ao gozo, apaga a distinção entre S1 e S2 que possibilitaria a dialética e promove uma certeza que, para se sustentar, necessita criar um outro imaginário a quem atacar. Sobre esse aspecto, me parece, há também uma fratura, pois se havia uma comunidade de gozo que dava suporte à manutenção da tradição, a entrada do DC faz com que esse suporte se enfraqueça e precise se formar uma outra comunidade fora da tradição, talvez mais pragmática, para lembrar Houellebecq – a dos grupos terroristas.

Importante entender que o terrorismo atualmente está na sua terceira geração, também chamado terrorismo 3G. Considera-se que a primeira geração foi antes da segunda Grande Guerra. A segunda geração, após a segunda Guerra, surgiu para criar ressonância para a causa palestina, porém, sem mortes. Já o terrorismo 3G é representado pela Al-Qaeda. O Estado Islâmico, por sua vez, é um dissidente da Al-Qaeda que dela mantém o sonho do renascimento do califado. Nascido após a internet, faz amplo uso da tecnologia para se comunicar e viralizar seus espetáculos de horror. Isso é fundamental, pois, como afirma a antropóloga Dounia Bouzar, "o Islã radical não passa pelas mesquitas", a maioria dos jovens se radicaliza "sem nunca ter posto os pés numa mesquita ou conversado sobre isso com um muçulmano de carne e osso"13.

Entendo que, assim, se dá uma nova aliança com o gozo, por uma escolha forçada que passa por fora da via paterna, da tradição e da cultura e, visando um pertencimento, se alia à pulsão de morte. Essa é a tendência dos dias atuais e parece ser também o caminho de alguns jovens que, escolhendo o pior, se decidem pelo terrorismo como forma de gozo e saída à segregação.


1 O cartel conta também com Rachel Amin (Mais-um), Aline Bemfica, Angélica Tironi e Rômulo da Silva, a quem agradeço e cujas contribuições fazem parte desse trabalho.
2 BERENGUER, E. "Del Hadith al Tuit, fundamentalismos identitarios y violencia". Acesso por: https://goo.gl/REKKcb
3 MILLER, J.-A. "Je suis Charlie". In Opção Lacaniana Online, nova série, n. 16 de março de 2015. Acesso por: http://opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero16/texto1.html
4 MILLER, J.-A. "Je suis Charlie". Op .cit.
5 O califa é um chefe politico sem nenhum poder religioso. O Imã é uma espécie de sacerdote encarregado de dirigir as preces na mesquita.
6 MILLER, J.-A. "Heresia e ortodoxia". In Opção Lacaniana, n.78 de fevereiro de 2018, p. 42.
7 HOUELLEBECQ, M. Submissão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
8 MORIN, E. "Tentando compreender" In Quem é o Estado Islâmico? Compreendendo o novo terrorismo. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2016, p. 10.
9 Sem desconhecer a tese de que o discurso capitalista não faz laço, ainda assim mantenho o termo para enfatizar os efeitos disruptivos da incidência desse discurso em uma comunidade orientada por significantes mestres.
10 LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 160.
11 LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op.cit., p. 30.
12 ROY, O. "Um Islã sem raízes nem cultura". In Quem é o Estado Islâmico? Compreendendo o novo terrorismo, Op.cit., p. 21-22.
13 BOUZAR, D. "Os jovens franceses da jihad". In Quem é o Estado Islâmico? Compreendendo o novo terrorismo, Op.cit., p. 52.

   
   
 


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