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Temos presenciado, na atualidade, a proliferação das imagens através das redes sociais com o auxílio de gadgets cada vez mais potentes, onde podemos tudo ver e saber, muitas vezes em tempo real, como é o caso de câmeras instaladas em lugares diversos. Tal realidade nos faz pensar acerca do privado, do íntimo, pois, segundo Gérard Wajcman: “o íntimo é o lugar onde o sujeito pode estar e sentir-se fora do olhar do outro”.1 Porém, temos estado expostos ao olhar constante do Outro, vigiados, monitorados, sem a possibilidade de escolher sair desse controle.
O filme Mil Vezes Boa Noite, de Erick Poppe, traz Rebecca (Juliette Binoche) que através da fotografia, retrata cenas dramáticas e chocantes, envolvendo dor, horror e morte em zonas de conflito e guerras, com o intuito de divulgar para o mundo a situação de sofrimento e instabilidade que muitas pessoas vivem em algumas regiões da África. Ela rompe a fronteira do mais íntimo e põe seu olhar, através da câmera, sem pedir permissão, nas vidas daquelas pessoas em momentos de horror, angústia e dor, deixando-as sem a chance de escolher ficar fora do enquadre das fotografias, que serão expostas na mídia e se tornarão públicas.
O início do filme apresenta um ritual de mulheres simulando um sepultamento que, na verdade, em pouco tempo, vemos que é a preparação para um ataque terrorista, onde uma mulher é envolvida em bombas a serem detonadas. Rebecca acompanha o ritual e a mulher bomba no carro, fotografando-a. Mostra o sofrimento dela, que vai ao encontro de sua morte, assujeitada a uma ordem, a uma crença. Rebecca presencia a explosão da bomba, é atingida e tem seu pulmão perfurado. Mesmo sangrando, se aproxima dos corpos e fotografa. Tal cena nos remete às diversas filmagens e fotos que vemos circular nas redes sociais de momentos de violência, morte, crueldade, onde as pessoas estão filmando ou fotografando, para o gozo do seu olhar e do Outro.
Uma das cenas mais chocantes é a de quando ela vai com a filha ao Quênia, onde se arrisca fotografando em meio aos tiros. Vê-se Rebecca à deriva do gozo. Mesmo avisada que teriam que sair daquele local, pois se anunciava um ataque de clãs, ela segue fotografando. O ataque inicia-se e Rebecca não consegue parar. Deixa a filha, que a implora, em pânico, que ela não vá. Entra na contramão de pessoas que fogem e vai ao encontro dos atacantes, em meio aos tiros.
Rebecca fotografa rituais privados e cenas de morte para expor na mídia, sem véu nem pudor: “Eu quero que as pessoas engasguem com o café da manhã quando abrirem o jornal”. É uma das cinco melhores fotógrafas do mundo, trabalha numa das maiores revistas do seu país, valorizada pelo tipo de fotografia que produz. Rompe as barreiras do íntimo da vida daquelas pessoas, expondo momentos de desespero diante da morte.
O que pretende Rebecca para além das suas boas intenções? Seria provocar mal-estar e gozo através do olhar do Outro? O olhar dela é anterior ao do Outro e é dirigido à morte e ao horror. Exibe a morte, a guerra, que estão fora, e o termo extimidade, criado por Lacan (1962/63) revela que algo dela aparece, sua pulsão de morte: “O êxtimo é o que está mais próximo, o mais interior, sem deixar de ser exterior”.2
Rebecca é tomada por um gozo mortífero ao fotografar situações de extremo perigo e não consegue deter a força voraz que a envolve. Gozo ou Desejo? Segundo Miller: “(...) o desejo, seguramente, é outra coisa que não gozo, porquanto o desejo é em referência a um não ter. Alguém deseja quando não tem. Isso é da própria palavra desejo. É nisso que há oposição entre desejo e gozo”3.
O que leva Rebecca a fotografar cenas tão violentas? Certamente ela interpretou, a partir de significantes do Outro, que deveria ser a pessoa a ocupar esse lugar. “Somente nossa fórmula da fantasia permite evidenciar que o sujeito, aqui, faz-se instrumento de gozo do Outro”4.
Após a separação, Rebecca procura a filha, que está visivelmente angustiada, e diz: “Eu te amo. Um dia quando você crescer, vai entender que não pode fazer nada quanto a certas coisas. Coisas que estão dentro de você. Sabe, comecei algo de que não posso fugir. Tenho que achar um jeito de terminar. Steph pergunta: “Quando vai terminar?”. Ela não consegue responder. Steph assume a câmera, representante fálico para a mãe e passa a fotografá-la. As posições se invertem: a mãe passa a ser alvo da câmera e, nesse instante, chora. Algo do furo e da falta é instalado. Segundo Lacan: “Para todo o sempre, o desejo humano continuará irredutível a qualquer redução e adaptação. Nenhuma experiência analítica irá contra isso. O sujeito não satisfaz simplesmente um desejo, mas goza por desejar, e essa é uma dimensão essencial de seu gozo”5.
A última cena do filme é forte e tocante. Rebeca volta ao local da primeira cena. As mulheres realizam o ritual do sepultamento e preparam: outra mulher? Neste momento, Rebecca é impactada quando é surpreendida com uma criança sendo envolvida pelas bombas. É uma menina bomba, e, somente aí, não consegue fotografar. Ela pede às mulheres a sua volta que parem, mas o ritual segue. Rebecca cai de joelhos e, ao seu lado, cai a mãe da menina. Porque Rebecca não consegue fotografar? Talvez tenha feito uma relação daquela menina bomba com as suas filhas e se identificado com a mãe que cai. Rebecca cai como objeto e, somente aí, algo da falta é consentido e a detém, barrando o gozo de fotografar uma cena tão impactante.
Rebecca vai a extremos para fotografar a morte/extimidade e poderia situar-se à maneira de Antígona, que, movida pelo desejo, luta com garra para dar um sepultamento digno ao seu irmão. Porém, o gozo a toma e a carrega para as zonas de guerra e morte, deixando exposta sua intimidade: a pulsão de morte.
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1 WAJCMAN, G. “La regla de juego, testimonios de encuentros con el psicoanálisis”, um avance. In: Consecuencias. Buenos Aires, n. 1, abril. 2008. Disponível em: http//www.revconsecuencias.com.ar/ediciones/001/terfile=arts/derivaciones/bassols.html
2 MILLER, J.-A. Extimidad. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2010.
3 MILLER, J.-A. A lógica na direção da cura. 1995. Seminário do IV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Demanda e Desejo na Entrada em análise, de 03 de dezembro de 1993, em Belo Horizonte. Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano, p. 39.
4 LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 838.
5 LACAN, J. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 325. |
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