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Causados pelo estilo transgressivo de Freud, que escreve na civilização um novo discurso, rebento da ciência, mas que inclui nessa escrita aquilo que a ciência rechaça e a literatura busca contornar e inscrever, é que colocamos “Goethe para conversar com Freud”, na atividade “Raízes literárias da psicanálise”, da Diretoria de Biblioteca da Seção São Paulo, organizada em parceria com o SESC-RP, na cidade de Ribeirão Preto1 ocorrida no último nove de junho.
Uma atividade onde o esforço de leitura se fez causa desde o início, da preparação até o debate, revelando a intrincada relação entre o que se escreve e o que se lê.
Trouxemos Goethe para a conversa a partir da tradutora e uma das maiores especialistas brasileiras no autor, Profa. Dra. Patrícia Maas2, que generosamente compartilhou sua intimidade de leitora e pesquisadora com profundo conhecimento do texto goethiano, colocando-o para conversar com Freud, conosco e com o público presente, dentre eles, psicanalistas lacanianos, não lacanianos, estudiosos e estudantes de literatura, frequentadores do SESC e interessados no tema.
Fernando Prota, membro da EBP, foi quem, com sua leitura atenta, perseguiu em Freud, pontos e índices das marcas da escrita e do estilo goethiano, levantando, com estilo próprio, algumas hipóteses sobre o que de Goethe fez raiz no pensamento freudiano.
Para localizar a relevância do esforço de nos voltarmos a outros campos de saber e de diferentes espaços na cidade, tal como o SESC, é que Perpétua Medrado, Diretora de Biblioteca da Seção São Paulo, na abertura da atividade, pontuou o lugar da Biblioteca na articulação e inserção da Escola na cidade, em direção a uma política que sustenta a extensão da psicanálise em permanente tensão com a formação dos analistas indo em direção ao que acontece para além do nosso discurso.
O “esforço” de nos voltarmos para o campo da literatura foi causado principalmente a partir de um Freud “leitor”, atento à sua época e a cada singularidade escutada por ele. Tão importante quanto isso, um leitor rigoroso e atento aos diferentes discursos e modos de escrita. Ele foi um leitor sensível ao texto, ao estilo e a influência de Goethe, citando-o cerca de duzentas vezes, em correspondências, textos, escritos técnicos e articulações científicas, a ponto de creditar seu interesse pela ciência a Goethe3 (principalmente a doutrina de Darwin), que muito se interessou pelas “ciências da natureza” e outros temas que revelavam sua inquietação e relação profunda com o “desejo de saber”.
As seguintes questões foram o ponto de partida dessa atividade: o que exatamente Goethe transmitiu a Freud? Qual seu lugar para Freud? Como podemos entender a marca da transmissão goethiana, ou seja, de que forma sua escrita se fez raiz no pensamento freudiano?
Goethe (1749-1832), escritor e poeta alemão, ícone do Romantismo europeu, tem um lugar privilegiado na literatura alemã, ajudando a transformar uma língua antiga em uma língua moderna. Língua na qual Freud se encontra imerso quase cem anos depois.
Patrícia Mass apresentou Goethe como um “leitor de seu tempo”, estabelecendo uma nova estética e uma escrita inédita na língua alemã: a escrita do sujeito moderno, a qual dá lugar e voz à subjetividade a partir da “estetização da existência”.
Patrícia Mass destacou pontos importantes para compreendermos melhor a inventividade, a genialidade e o experimentalismo de Goethe que tanto marcou Freud.
O movimento “Sturm und Drang” (tempestade e ímpeto), por exemplo, do qual o clássico livro de Goethe “Os sofrimentos do jovem Werther” é fundador, apresenta um modo de escrita que incorpora, nela mesma e nas personagens, uma ideia de “genialidade” e de figuras, artistas e personagens que trazem para o campo da arte, até então assentada na estética neoclássica, assuntos e materiais que estavam fora do campo da literatura e da estética. Há a inclusão do sublime, do grotesco e da subjetividade. Uma escrita próxima à “confessional” (tal como os relatos de conversão, estilo de escrita religioso), mas com a diferença de emprestar um tratamento estético. A escrita de Goethe incorpora o espírito da “Tempestade e do Ímpeto”, da liberdade de expressão, do extravasamento subjetivo e da projeção do eu na natureza de forma angustiante.
Como Patrícia Maas descreve: “O gênero romance até então era descritivo, de narrativa de viagem, com uma forma realista. Não havia um suporte de escrita, um suporte capaz de dar conta desses excessos do eu, excessos subjetivos. Goethe foi o primeiro autor de língua alemã capaz de concentrar numa obra, por meio do romance epistolar, todo esse extravasamento lírico que talvez tenha antecipado a fala sobre si”.
Outro aspecto trazido por Patrícia Mass diz respeito ao gênero “romance de formação”, engendrado por Goethe, a partir da obra “Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister” (1795-96). De forma muito reduzida e simplista, esse gênero passou a ser matriz morfológica para outros romances que se pretendiam “de formação”, isto é, que apresentavam a trajetória de um individuo jovem em direção ao equilíbrio e à inserção na sociedade, a “formação de sua personalidade”. Ela traz elementos importantes para além dessa concepção reducionista do gênero. Primeiro marca a ironia no texto de Goethe, estratégia e dispositivo utilizado para manter um distanciamento em relação ao próprio discurso. Outro ponto diz respeito ao que caracteriza o romance como um gênero discursivo por excelência, “que aceita todos os tipos de discurso”. Uma possibilidade de ultrapassar os limites normativos do próprio gênero, da própria forma discursiva. O romance de Goethe é exemplar nesse sentido. Várias ideias, discussões filosóficas, estéticas, educativas e artísticas que estavam circulando naquele momento, foram captadas por ele e incluídas no romance. Ao mesmo tempo em que o personagem se lança em direção a certa “formação da personalidade”, isso não se dá propriamente. Ao final, o personagem termina atormentado, dando-se conta de que sempre esteve mergulhado em si mesmo. Em trecho citado por Patrícia Maas, o personagem traz uma questão essencialmente goethiana: “Olho para mim e vejo o mundo”, numa relação de atravessamento entre o excesso da introspecção e o mundo exterior.
Por fim, Patrícia Maas faz uma leitura importante sobre o “Fausto”, especificamente o segundo Fausto (1832), apresentando-o como um “romance da ação”. Depois de um sono profundo, Fausto acorda em um bosque e percebe a grandiosidade do mundo e quer conquistá-lo a partir da transformação da natureza. O primeiro Fausto é melancólico, já o segundo é um “empreendedor”, um colonizador, um indivíduo que se faz a despeito da tradição, um indivíduo moderno por excelência. Um homem do seu tempo às portas da revolução industrial. Ele vai transformar a natureza a partir do progresso, com a ajuda de Mefistófeles, o diabo.
Após as pontuações e contribuições de Patrícia, Fernando Prota trouxe suas hipóteses e construções, em forma de ensaio, conduzindo-nos pelo caminho de como o Romantismo alemão, mais especificamente Goethe, se insere na obra de Freud.
Inicia articulando sobre o objeto da psicanálise, o inconsciente, como uma causalidade que assume a dimensão de uma verdade subjetiva, uma verdade acessível a partir da fala, mas não de uma fala qualquer, de uma fala muito próxima à “voz subjetiva”, a isso que fica fora da fala formal e objetiva.
Lança a questão: “como abordar uma verdade que não se coloca no campo objetivo, mas sim no campo objetal? Que ferramenta pode ter acesso a esse objeto cuja matéria é imaterial?” Destaca a coragem de Freud que, dentro do discurso científico, introduz a cultura como um campo necessário e incontornável para a abordagem do objeto causa em sua dimensão de verdade subjetiva.
Hipotetiza que Freud aborda a cultura a partir de três pontos:
1) Os efeitos de linguagem, ou seja, o que se deposita na cultura tem valor de verdade. O lugar dos mitos, dos grandes escritores e artistas para Freud são exemplos disso.
2) O próprio Freud está imerso na cultura do seu tempo e, se o objeto em estudo é intrínseco à linguagem, ele mesmo, Freud, está imerso em seu objeto de estudo. Percebemos isso nos relatos de seus casos, em que Freud, muitas vezes, se dirige ao leitor chegando até a colocar suas divisões subjetivas. Apropriando-se do termo caro ao Romantismo alemão, Fernando Prota aponta que nos casos relatados por Freud, o “romance de formação do neurótico” e o “romance de formação do psicanalista Freud” e da própria psicanálise se entrelaçam.
3) O estilo de Freud, seu estilo de escrita, sua narrativa, revela algo novo e inesperado para uma comunicação científica.
Então, Fernando Prota lança a questão: O estilo de Freud é próprio ao sujeito Freud ou causado pelas características de seu objeto, o inconsciente?
Indo mais fundo na raiz goethiana em Freud, Fernando Prota trabalha três pontos:
1) a importância da dimensão da “voz subjetiva” como uma forma de acesso ao saber, uma verdade do sujeito, em contraponto às apreensões da subjetividade da filosofia clássica, da cosmogonia religiosa e do positivismo científico da época. A voz subjetiva como aquilo que conduz a verdade já antecipada pelo movimento do romantismo, irá conformar a única regra psicanalítica: a livre associação.
2) O romance de formação articulado à própria formação da psicanálise e de Freud enquanto analista.
3) A influência goethiana sobre o conceito de pulsão de morte, apresentando como isso aparece de maneira dialetizada em Fausto.
Denotando o estilo literário assumido por Freud, cuja influência de Goethe é decisiva, Fernando Prota encerra citando o poema árabe com que Freud conclui “Além do princípio do prazer” (1920), texto no qual ele se aproxima de seu objeto de estudo de uma forma característica, oscilando entre teorizar e especular, ou seja, mancando:
“Ao que não podemos chegar voando, temos que chegar mancando
As escrituras dizem que não há pecado em mancar”
E assim, após um extenso e implicado trabalho de leitura e conversa sobre a transmissão deixada por esses dois “gênios” (no sentido goethiano) empreendidos por Patrícia Maas e Fernando Prota, abrimos para o público e encerramos com o desejo de avançar ainda mais em busca de outras raízes literárias da psicanálise.
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