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Realizar o cartel
Sérgio de Mattos

dobradica_carteisRepete-se à vontade, e com certa bravura, especialmente entre aqueles responsáveis pelas atividades dos Carteis, que o Cartel é, segundo Lacan, o “órgão de base da Escola”. A expressão “órgão de base” é encontrada em D’Écolage. Ali Lacan afirma que, sem demora, começa a Causa Freudiana, restaurando em seu favor o órgão de base retomado da fundação de sua Escola, ou seja, o Cartel. Não se encontra essa expressão na ata de fundação, de 1964. O que ali podemos ler é que a Escola Freudiana de Paris representa, para Lacan, o organismo em que deverá ser realizado um trabalho cujo princípio é o de uma elaboração, sustentado por um pequeno grupo. Há, portanto, uma ligação orgânica entre as duas proposições, que podemos escrever assim: o Cartel é o órgão de base do organismo Escola.

É curioso, entretanto, que, mesmo que esteja claro o valor dessa função orgânica, os Cartéis parecem ser tomados como algo de menor valor.

Tudo indica que houve um deslizamento para baixo, na concepção lacaniana de Cartel. Parece que, com as mudanças, as complexificações de nossas instituições e um mal-entendido sobre esses termos, o órgão de base foi deslocado de seu contexto e sentido original e sofreu uma degradação.

Órgão
Se iniciarmos pela palavra órgão, nota-se que não encontramos, na anatomia nem na fisiologia dos corpos vivos, um órgão de base, e, sendo muitos deles essenciais para o bom funcionamento do organismo, parece difícil entendermos essa expressão por tal via. Entretanto, podemos recuperar seu valor se recorrermos à noção original de órgão, que se precisa da palavra grega órganon (instrumento, ferramenta). Um órgão foi definido por Aristóteles com base na função por ele efetuada – como se todo instrumento, e cada parte do corpo, tivesse um fim próprio. Nesse sentido, o Cartel, como órgão, recupera seu sentido se entendido como instrumento, um instrumento que tem um fim próprio para a Escola.

Órganon também foi o termo usado pelos comentadores de Aristóteles em relação ao seu conjunto das obras sobre lógica. Nesse caso, a lógica era vista como um instrumento para a filosofia, implicando relações com o conceito de arquitetonicidade. Dessa perspectiva, o Cartel como órgão pode ser associado a um instrumento lógico próprio às finalidades da Escola.

Base
Tomemos agora o termo “base”. Ele remete a um amplo espectro semântico. Pode significar o que está em baixo, o que sustenta uma edificação, o princípio fundamental de uma teoria ou ideia e, no sentido militar, representa uma instalação, um centro de operações vocacionado para responder às necessidades das forças armadas com funções operacionais ou logísticas. Base é, ainda, um conceito da matemática. Houve um tempo em que o homem não sabia contar. Ainda hoje há povos que sabem contar desta forma: um, dois e... muitos. Uma base foi a primeira tecnologia desenvolvida pelo homem para auxiliar na contagem1, servindo-se da quantidade de seus dedos. Esse é o sistema mais usado. E significa que, para contarmos, agrupamos as coisas de dez em dez. Isso foi útil para que se trocassem grandes quantidades. No sistema binário usado para a computação, agrupam-se funções de dois em dois: 0,1; ligado, desligado; aberto, fechado. No sistema duodecimal, para contar o tempo de 12 em 12; um ano, 12 meses; um dia, 24 horas, etc.

Vemos, em todos esses sentidos discriminados acima, um aspecto do Cartel: princípio fundamental na base militar – na medida que o Cartel é proposto como máquina de guerra contra o discurso do mestre, contra o grupo alienado. Entretanto, dois deles chamam mais atenção. Um pelo efeito imaginário degradante que suscita, outro pela potência de formulação que ele proporciona. O primeiro é a ideia de base tomada como o que está em baixo e o inicial. Vejo, nessa interpretação, uma causa importante da degradação dos carteis. Nesse sentido, o órgão de base é aquele que é inferior, por onde se começa; é o Cartel visto somente como uma porta de entrada para os “novinhos”, os inexperientes que estão chegando à Escola.
Você está chegando? Que tal fazer um Cartel?

Por outro lado, podemos pensar o Cartel/base como a base de um sistema, de uma estrutura de ensino e coletivização própria, em consonância com as condições de existência da psicanálise na medida em que responde a seu próprio real. Essa base é uma base lógica, lógica do não-todo, lógica inconsistente, lógica de um conjunto sem uma lei de formação. Aqui podemos dizer que o Cartel é o número em que a Escola é multiplicada. A base da conta da Escola é o Cartel, que deve multiplicar sua lógica no interior de todas as ferramentas que a constroem, do mesmo modo como se multiplicam os números fractais.

A teoria de Turim, de J-A. Miller, nos ensina sobre essa operação, pois, como trabalhou conosco Marina Recalde, na Jornada de Carteis 2018 – EBP-MG, há uma articulação orgânica da Escola como sujeito e o funcionamento do Cartel.

Em outras palavras, o Cartel é a matriz específica de um modo de coletivização subjetiva que se forma a partir de uma lógica inconsistente, isto é, sem um universal que dite a lei de formação de um conjunto, como se verifica nos conjuntos paradoxais de Husserl.

Porta lógica2
Não há uma lei de formação para todos os analistas, estando a cargo de cada um fazer sua lei a partir de sua relação com seus S1, o gozo a ele conectado e a Causa da psicanálise. O Cartel é o instrumento institucional prínceps oferecido, para que seja colocada, em primeiro plano, a enunciação de cada um sem dispensar, entretanto, a formação de um conjunto. É o modo original de a psicanálise coletivizar, proporcionando um saber fazer com o múltiplo, de modo evitar a homogeneização das diferenças.

Para finalizar, o Cartel é um modo de nos agrupar para a Escola poder contar. Contar como? Contar como órgão de formação, transmissão, ensino e ação nos impasses da civilização. Trata-se de um tipo especial de “porta lógica”, um algoritmo de Lacan para nossa entrada na Escola e na civilização.

Isso, a meu ver, se chama realizar o Cartel na Escola.

1Importante notar que o primeiro instrumento utilizado para contagens estava nas suas mãos, seus dez dedos; daí a razão de o sistema de numeração decimal ser, sem dúvida, o mais utilizado pelo ser humano.

2 Portas lógicas são circuitos lógicos que operam um ou mais sinais lógicos de entrada para produzir uma e somente uma saída. A analogia aqui sugere que o circuito da Escola permita entrar múltiplos sinais e que, desde suas operações próprias, vise produzir, como saída, um psicanalista.

 
   
 


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