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Percurso de formulação de uma questão de cartel: Sublimação, do paradigma da transgressão ao paradigma da manipulação1
Fabíola Ramon 2

Apresento um recorte da minha formulação de questão de cartel, iniciado há dois meses3. Ela partiu da clínica, mas configura-se conceitualmente: pretendo fazer um percurso da sublimação orientada pelo gozo e pelo significante, e a relação entre eles nos Seminários 7 e 23.

Uma questão inicial é um lançamento que tem no seu cerne um objeto, que se endereça a um alvo (ou finalidade) e se sustenta numa pretensa constância, possibilitando que a questão inicial, fundada em um furo, consistência estruturante do saber, possa ser sustentada não a partir de um estudo programático ou um método standard, mas sim a partir de uma causa.

Apresentar o início de formulação de minha questão é colocar algo dessa causa. Há uma aposta de que o próprio trabalho de formalização da formulação possa incluir-se no trabalho do cartel.

Há anos me interessa a articulação entre arte e psicanálise. Inicialmente essa articulação se colocava no sentido de buscar elementos conceituais na psicanálise que possibilitassem fruição e saber na relação com as obras. Como acréscimo, havia também certa satisfação na apreensão de alguns conceitos da psicanálise que se “mostravam” muito claros no encontro com algumas obras de arte. De toda forma, a relação com a ideia de sublimação não era prioritariamente clínica, permanecia no campo das ideias e do gozo advindo dessa idealização.

O olhar e a escuta aguçados pelo campo da arte, depositaram, ao longo do tempo, efeitos na clínica, efeitos que busco formalizar atualmente. Casos clínicos me reenviam de outra maneira para o “problema da sublimação”. Casos nos quais, tal qual uma instalação de arte contemporânea, no qual o falasser traz para o trabalho analítico arranjos criativos, me fazem perguntar: do que se trata: invenção? artifício? Essas “invenções” comportam algo da sublimação? Até que ponto a sublimação é um conceito clinicamente operável?

Tomo questões de Romildo do Rêgo Barros: “A sublimação é mecanismo de sujeito ou transformação do objeto? Uma operação de sujeito ou um fenômeno?”4. E completo: “O que diz se ali há sublimação? O objeto da fantasia elevado à dignidade da Coisa, ou o trabalho do falasser nessa elevação?”.

Freud apresenta a sublimação como um dos destinos da pulsão na busca de satisfação5, que se dá a partir de um desvio quanto ao alvo e uma mudança do objeto, deslocando-se do “prazer do órgão”. A pulsão perverte a função sexual e encontra satisfação em um objeto que se liga ao Outro, à cultura, uma satisfação que não se dá de modo indireto sintomaticamente.

Lacan foi mais adiante de Freud ao colocar a questão para além da satisfação pulsional, se dirigindo ao objeto.

No Seminário 7, Lacan trabalha a articulação entre linguagem e gozo, com destaque para o estatuto do corpo que, segundo ele, a investigação freudiana redimensiona. “A investigação freudiana faz entrar o mundo inteiro em nós, recoloca-o definitivamente em seu lugar, ou seja, em nosso corpo, e não alhures” (p. 117)6.

Neste seminário, Lacan retoma o das Ding de Freud, na qual a experiência de satisfação é decomposta em uma parte “constante e inassimilável”, das Ding, o que permanece irrepresentável na experiência de satisfação e que recorre ao significante para se fazer contornar7. Na sublimação, a apreensão de um objeto não apreensível pela cadeia significante presentifica a falta de das Ding. A coisa em si é despojada de significado para tomar forma de objeto do desejo, colocando-se como uma maneira de lidar com o desejo a partir do objeto, este “elevado à dignidade da Coisa”.

Retomando a questão para esse cartel, encontro um texto de Éric Laurent8, em que ele faz um caminho da sublimação freudiana ao escabelo, partindo da ideia de transgressão em relação ao objeto e indo em direção ao que chama de “manipulação” enquanto maneira de compor. No Seminário 7, o gozo é da ordem real, delimitando a zona de das Ding, que difere do imaginário e do simbólico. Esse centro, gozo de ordem real, é protegido por uma barreira. É preciso um forçamento, transgressão, para dar contorno a esse vazio. Isso implica em alçar o objeto à dignidade da Coisa; temos aí a sublimação.

No último ensino de Lacan, essa perspectiva muda, pois linguagem e gozo passam a caminhar juntos; o significante é causa de gozo. Não se trata mais de pensar em transgressão, de algo da ordem do inacessível, mas sim do Impossível. Há a passagem da ideia de forçamento/transgressão para a ideia de manipulação, manipulação enquanto maneira de compor, de se haver com o parceiro sexual impossível.

Entre o Lacan do Seminário 7 e o do Seminário 23, há muitas mudanças verificadas, inclusive, no fato de que não utiliza o termo sublimação neste último. Entre um e outro, do que se trata? Como tomar para o campo da clínica essa “passagem”? Como os “novos arranjos” podem nos orientar nesse percurso?

Para o trabalho de cartel, pretendo tomar o caminho do percurso, um percurso conceitual orientado pela relação entre linguagem e gozo. O caminho do percurso vem no lugar de um “furo”; pontos de buraco no saber inquietantes que se colocam como causa. O alvo de chegada que está no horizonte desse furo, desde a partida já é sabido como não existente. Não há aí um desenvolvimento linear. Como muito bem alerta Miller em “O inconsciente e o corpo falante”9, não há em Lacan um antes e um depois no sentido desenvolvimentista. Clinicamente, não é possível tomarmos o seu ensino a partir dessa perspectiva.

Mesmo advertida disso, esse buraco se coloca como questão. Esse ponto nebuloso presentifica uma ausência, que não existe em si, mas que se apresenta como contornável, realizável. Parece-me que este é um dos pivôs nos quais gira a minha questão.

O objeto almejado é o que me orienta (e me desorienta); suponho que o alvo que atingirei terá efeitos de formação que serão verificados a posteriori. Apresento aqui um lançamento inicial, que, com certeza, incidirá na sustentação desse percurso já inaugurado.

1 Cartel declarado à EBP: “Sublimação, sinthoma”, constituído por Christiano Lima, Fabiola Ramon, Flavia Corpas, Marcia Stival e Heloisa Caldas (mais-Um).

2 Correspondente Seção SP - EBP.

3 Trabalho apresentado nas Jornadas de Cartéis da Seção São Paulo. Agosto, 2017.

4 REGO BARROS, R. Criação e sublimação. In: Errâncias, Adolescências e outras estações. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.

5 FREUD, S. (1914). “Sobre o Narcisismo”. In Obras Completas Rio de Janeiro: Imago. Vol. XIV, 1996.

6 Ibid.

7 LACAN, J. O Seminário livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997.

8 LAURENT, E. Falar com seu corpo-escabelo. In: https://bit.ly/2K1Re3N

9 MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. In: https://bit.ly/2JXEGv6



   
   
 

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