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A revolução dos corpos "Uma conversa da psicanálise com o projeto TransVest"
Sérgio de Mattos 2

Três grandes fatores levam ao silêncio: a fome, o medo e a ignorância. Dar lugar à voz a um segmento segregado da sociedade é o propósito do projeto TransVest. Sujeitos Trans são impedidos do acesso ao saber, o que os deixa à margem das conquistas e decisões políticas necessárias à constituição da sociedade civil.
A psicanálise, herdeira do valor e do poder da fala, considera que são nossos parceiros todos aqueles que lutam por esse direito. Sabemos que a via da palavra conduz a uma vida mais digna e praticável e que é preciso chegar ao que é fundamentalmente segregativo: o Real.

Nesta proposta da Ação Lacaniana da EBP, qual seja, a de levar à cidade um debate sobre temas candentes da nossa sociedade, realizamos um encontro promovido em Belo Horizonte, no espaço Coworking chamado Guaja. Nessa ocasião, contamos com 15 participantes da Ong TransVest, além de seu criador, Duda. Chamou a atenção as condições de vida deste grupo. Dizem-se, por exemplo, em luta para serem aceitos como seres humanos, tal como foi outrora com os negros, os índios e as mulheres. São como criaturas da noite por não serem bem vistas durante o dia. A maioria, por falta de aceitação, vive da prostituição. Cerca de 70% são portadores de HIV.

Preocupou-nos a questão da linguagem; reparamos a dificuldade para nós mesmos de nos endereçarmos àqueles sujeitos cuja identidade perturba os padrões de referência por nós adotados e que em nós se incorporaram. E podemos dizer que tal dificuldade gera um grande mal-entendido, responsável por um efeito de segregação em ambas as partes.
O discurso dos participantes, de início, tinha uma espécie de violência defensiva baseada em uma ideia da psicanálise e de nossa condição sócio cultural. Contudo, surgiram horizontes de alguma parceria futura, evitando uma simples apropriação "acadêmica" daquela experiência ou um "espetáculo do exótico".

Com a conversa, obtivemos trocas de percepção dessa realidade. Segundo suas informações, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo e, ao mesmo tempo, aquele que mais frequenta sites pornográficos com conteúdo Trans.

Como em nossos museus, o que se esconde é o que se deseja, e o que se deseja nos move desde os labirintos de nosso inconsciente e nosso gozo. Santo Agostinho definia com o termo técnico Libido a consequência do pecado, ou seja, a excitação incontrolável das partes íntimas (obscenas), sob a base de um versículo de Paulo em Gal. 5,17, onde o pecado é definido como uma rebelião da carne e do desejo contra o espírito, uma cisão irremediável.

Se a libido se define pela impossibilidade de controlar os genitais, o estado de graça que o precedeu consistiria então no controle perfeito da vontade sobre as partes sexuais. A um aceno da vontade, os genitais se moveriam como movimentamos uma mão, e o marido teria fecundado a esposa sem o estímulo ardente da libido.

Assim, o desafio supremo da graça é exibir o corpo sem véus. O corpo mais gracioso é o corpo nu, cujos atos o circundam com uma veste invisível, embora exposto aos olhos dos espectadores. Não poderíamos ao menos cogitar que há algo da graça nesse corpo vestido de linguagem, que o extrai da pura biologia inserindo-o na história, o corpo do falasser, corpo a um só tempo simbólico e libidinal, imperfeito como a criação, e ofertar, com o saber da psicanálise, uma abertura outra ao ser falante, para que não emirja de forma imperativa ou desgraçada a cobiça de cobrir todas as faltas?

Será então que, como diz Aristóteles, o pudor está nos olhos de quem vê? E o pecado é deixar de ver a graça em qualquer corpo? É provável que a nudez ritual dos batizados explique a tolerância da nudez balnear em nossa cultura.Indo a um extremo, uma praia de nudismo é vestida de um naturalismo antierótico. É contra esta veste de graça que está dirigida a estratégia do sádico; e a encarnação que ele quer realizar é o obsceno.

Ao restituir este controle e ao olhar sobre a nudez de modo obcecado é que o tirano pretende, em nossa época, seja nos museus, na arte, na rua, vociferar que “Toda nudez será castigada”, como revelava a cáustica peça de Nelson Rodrigues, sobre uma família tradicional vivendo entre máscaras sociais e hipocrisia.

O casamento entre Herculano (o pai da família) e Geni (uma prostituta) traz à tona a verdade sobre os personagens. O filho que tem uma relação edipiana com o pai vinga-se deste seduzindo a madrasta, depois se realiza no homossexualismo fugindo com um ladrão boliviano, acontecimentos que levam Geni ao suicídio. A nudez deixa entrever a imperfeição e o real incontrolável da libido, a ser domesticada a todo custo, “joguem pedra na Gení”, “atirem a primeira pedra”. Ela demonstra que o Rei está nu ou, como nos disse Duda, criadora do projeto TransVest, "a subversão começa no corpo”.

Revisão: Veridiana Marucio (Coordenadora da Ação Lacaniana)

1 Diretor de Cartéis e Intercâmbios da EBP-MG.



   
   
 

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