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Urgência subjetiva - Uma abordagem interdisciplinar em saúde mental 1
Emmanuel Mello 2

O convite da Diretoria da EBP-SP para uma manhã de conversa em torno do tema da Urgência Subjetiva foi aceito prontamente pela coordenação do Programa de Saúde Mental da Prefeitura de Ribeirão Preto. Esta Ação Lacaniana cairia como uma luva na atual proposta de uma rede de saúde mental menos centrada no saber médico e mais empoderada nos outros saberes e formas de cuidado. Mas como sabemos que uma luva sempre cai pelo avesso, ficamos na expectativa de como transcorreria a conversa. Perder-se-ia no queixume da falta de condições de trabalho que tanto assola o campo da chamada saúde mental ou seria propositiva?

fotoNo dia, por volta de 100 pessoas lotavam o anfiteatro da FEA de Ribeirão Preto. Estudantes, profissionais do campo “psi”, trabalhadores da saúde mental, mas também da atenção básica e até mesmo do SAMU, muitos enfermeiros, além de outros. Todos atentos para ouvirem os relatos e a conversa.

Os trabalhos se iniciam.
Luana, enfermeira, com atuação na estratégia de saúde da família do município e com uma transferência de saber com a psicanálise que lhe permite estar no segundo ano do curso de introdução à psicanálise de um Instituto (CLIN-a) em Ribeirão Preto, relata a oferta da fala diante de um quadro que não deixa de ser corriqueiro nas unidades de saúde: o de agitação angustiada que demanda um encaixe urgente com o médico. Num caso específico, essa oferta permitiu a estabilização e o surgimento de uma suposição de saber dirigida a um grupo de acolhimento na própria unidade básica.

Sinval, também enfermeiro e educador físico, em sua fala animada e entusiasmada, demonstrou bem algo não menos corriqueiro: uma equipe multidisciplinar que, tomada de um senso de urgência não compartilhado pela própria usuária do serviço, tentava executar protocolos à revelia do sujeito que estava diante deles.

foto2Cristiane Barreto apontou a delicadeza presente no caso de Luana e o entusiasmo atlético do relato de Sinval como duas formas de vencer o obstáculo do protocolo, que costuma ser um recurso para a angústia do técnico, que faz calar o sujeito em crise diante dele. Apontou que o protocolo está do lado do “Pronto Atendimento”, que se configura num atendimento pronto, como uma defesa contra a angústia. Cristiane propõe, contra isso, a prontidão do atendimento, prontidão da escuta, que supõe um sujeito na crise e na agitação psicomotora.

A palavra circula pela plenária fazendo revelar a angústia, os impasses e os encontros difíceis daqueles que se ofereceram para lidar com pessoas em situação de agitação, desespero ou sofrimento agudo. Experiências mais ou menos difíceis seguem sendo relatadas, mas de alguma forma as intervenções permitiram fazer daquele momento uma abertura para a voz, para uma fala que não se transforma num simples falatório de gozo sem fim que deixa apenas um resto de culpa. As falas se davam de forma viva e em alguns momentos, entusiasmada. A conversa permitiu surgir o desejo diante da angústia paralisante.

Ficou claro que o trabalhador da saúde mental sofre essa urgência também e acaba recorrendo aos protocolos como uma forma de aliviar seu próprio desamparo diante da angústia do outro. Trata-se da urgência subjetiva em seu aspecto de sintoma contemporâneo como proposto por Éric Laurent, ou seja, “uma nova forma sintomática ligada ao traumatismo generalizado de nossa época”3. Não seria exatamente o fato de ver-se tomado de uma urgência constante, até mesmo quando ela não existe do lado do paciente que atende, um dos aspectos do cansaço do trabalhador da saúde mental atualmente?

Mas então qual o lugar que se pode ocupar diante da urgência subjetiva? Como respondê-la para, de fato, possibilitar um alívio ou estabilização que impeça uma passagem ao ato?

Francisco Paes Barreto define a urgência subjetiva como a “impossibilidade, num dado momento, de significar minimamente pela fala um gozo que não encontra o significante necessário para transformá-lo”4. É o desmoronamento do Outro, o esfacelamento de seu aramado simbólico, que lança o sujeito na angústia da presença total do objeto a. O recurso seria então fazê-lo falar infinitamente, como nas anedotas de psicanalistas? Não se trata disso.

Certamente, o "paciente da urgência também tem que passar pelo Outro para resolver seu sofrimento, uma vez que o sujeito, se bem que singular, padece de universal". No entanto, há uma especificidade da psicanálise que a coloca numa outra vertente que não a da eterna elaboração do evento traumático, ou seja, toma o trauma "como processo, como real da não relação sexual". Sabemos que "dar sentido, apostar no inconsciente transferencial, produz efeitos terapêuticos", mas mais do que isso, ao analista importa apontar o sentido libidinal do trauma, o momento da queda do Outro e a função que este cumpria na dinâmica libidinal do sujeito.5

Como indica, então, Éric Laurent em O avesso do trauma “é necessário ‘causar’ o sujeito para que reencontre regras de vida com um Outro que foi perdido, para que invente um novo caminho causado pelo traumatismo”. Abre-se com isso a possibilidade de que o sujeito, tomado por uma agitação profunda e um sofrimento intenso, ao procurar uma unidade de saúde, lá onde esperava apenas por um pacotinho de medicações que calasse seu trauma, encontre, em seu próprio dizer, um caminho novo para sua libido. Pois como afirma Guillermo Belaga, o ato analítico “não se resume a dar sentido ou restituir o sentido recalcado; ele implica também em apostar numa reinvenção desse Outro que caiu, que se perdeu”.

Aprendemos um pouco mais disso naquela manhã de sábado. E o resultado foi tão entusiasmante que fez surgir uma proposta de uma nova conversação. Que venham muitas outras.

 

Alguns agradecimentos.
Agradecemos à Prefeitura do Campus da USP de Ribeirão Preto, na pessoa do colega Eduardo Benedicto, que generosamente disponibilizou o auditório da FEA e toda estrutura necessária para a realização do evento.
Agradecemos também a Marcus Vinícius Santos, coordenador do Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto, bem como a todo comitê gestor, pela abertura e parceria desde o início.
Por fim, agradecemos a Cristiane Barreto a generosa e delicada condução que transmitiu de maneira viva a psicanálise e ao mesmo tempo acolheu a angústia da audiência, permitindo uma abertura para a reinvenção de seus modos de fazer junto ao sofrimento do outro.
E também à colega Silvia Sato que, na coordenação da conversação, animou o desejo de todos para que ela acontecesse.

1 Conversação ocorrida em 3/3/2018, em Ribeirão Preto.

2 Psicanalista, associado ao CLIN-a, Psicólogo do CAPS-ad de Ribeirão Preto, participante da comissão organizadora.

3 BELAGA, G.A. “Na cidade pânico: sintomas da urgência subjetiva e respostas da psicanálise. In: Revista Curinga, As novas formas do sujeito suposto saber – Belo Horizonte: escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 27, novembro de 2008. (pg. 17)

4 PAES BARRETO, F. A urgência subjetiva na saúde mental, in, Ensaios de Psicanálise e Saúde mental. Belo Horizonte, Scriptum livros, 2010 (pg. 215)

5 BELAGA, G.A. “Na cidade pânico: sintomas da urgência subjetiva e respostas da psicanálise”. In: Revista Curinga, As novas formas do sujeito suposto saber – Belo Horizonte: escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas, n. 27, novembro de 2008. (pg. 18)

   
   
 

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