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Um encontro para comemorar1
Oscar Reymundo

Não farei um comentário do livro2 . Primeiro, porque não me propus ler todo o livro às pressas para poder chegar a esta noite com todo o livro lido. E segundo, porque me entusiasmou, muito mais, comemorar, comemorar do meu jeito, que um psicanalista se dedicasse a pensar, a escrever e publicar sobre os efeitos do encontro sempre contingencial. É isso! Acho que é para comemorar quando uma reflexão nova cutuca, perturba, incomoda meu acreditar saber. Isso é da ordem de um bom encontro. Comemoro, então, essa cutucada, essa perturbação, pelos efeitos de reorientação que esse novo saber, que essa nova reflexão, produz em mim. Por exemplo: “O que cessa de não se escrever”, quer dizer, que sem aviso prévio algo, em um instante, se escreve. Quantas vezes eu já repeti essa fórmula da contingência de um encontro sem me perguntar: O que foi que se escreveu, então, no instante preciso desse encontro imprevisto? O que foi que se escreveu nesse instante que possa ser lido no trabalho de uma análise? “De que se trata essa ligação nova, inédita, que surge da contingência de um encontro e que se destaca sobre o fundo da indizível opacidade sexual?”. Perguntas que orientam e reorientam nos rumos da ética do encontro. Algo para ser comemorado!

Acabamos sabendo pela experiência psicanalítica, a própria enquanto analisandos, e como analistas de outros sujeitos, que na atrapalhação na relação com o parceiro amoroso, independentemente do sexo anatômico deste parceiro, tem algo impossível de se escrever, uma vez que aí tem dois que gozam de modo radicalmente dissimétrico. Isso que não se pode escrever é a relação sexual, para além do quão fogoso possa ser o sexo entre os dois. Quer dizer, impossível de se escrever a relação sexual com uma única fórmula que, tendo o mesmo sentido, possa ser aplicada aos parceiros implicados na relação.

Estamos falando, então, de um desencontro, desencontro que muitas vezes é motivo de reclamações e queixas, ora sobre si mesmo, ora sobre o parceiro. O que a psicanálise destaca é que para além dessas queixas há um desencontro que é, digamos, de estrutura, quer dizer, que há um vazio entre os parceiros impossível de simbolizar e esse vazio independe da boa ou da má vontade de algum deles.

Perguntemo-nos, agora, do que falamos, na psicanálise, quando falamos de parceiros. Bem na passagem dos anos 60 para os 70 do século passado, no auge da revolução sexual, da pílula, dos Beatles, dos Rolling Stones, circulava, ao menos nos ambientes universitários, um livro que foi um sucesso editorial pela ousadia com a qual a autora, Erica Jong, relatava as aventuras sexuais de uma escritora que queria parecer com Virginia Wolf. O livro se chama “Medo a voar” e nele a autora fala de um modo tão irreverente, quanto inteligente e divertido, do que ela chamou, numa tradução livre, de “encontros de zíper”, quer dizer, esses encontros sexuais fortuitos, casuais, nos quais se abrem os zíperes das calças ou das saias na busca de uma satisfação sexual com alguém desconhecido cujo nome, talvez, nunca venhamos a saber. Uma espécie de antecedente do “ficar” contemporâneo quando este se limita ao ato sexual que não faz laço porque falar nem sequer se coloca como condição para a realização do ato. Mas isto não exclui que às vezes, para surpresa dos gozadores implicados, algo possa se escrever desse encontro fortuito e ponha os sujeitos a falar e acabem “dando liga”.

Vejamos, então, que o parceiro de que se trata e do qual, até, podemos nos queixar toda uma vida, está relacionado à ideia de que os vínculos humanos, mesmo os mais malucos, estão submetidos a uma ordem que com Lacan aprendemos a chamar de “discurso”. Cada discurso implica em uma regulação do vínculo, uma regulação do laço social que se estabelece entre dois sujeitos, que independe da anatomia, e que inclui o gozo de cada um e produz um resto inassimilável pela ordem simbólica e que não tem DR capaz de eliminar, nem de ordenar. Digamos que na parceria, tal como a concebemos na psicanálise da O.L., cada parceiro se arranja com a inexistência de uma programação sexual que permita um enganche sem restos com o outro.

Esse resto inassimilável de gozo presente no sintoma de cada um faz com que este, o sintoma, seja o verdadeiro parceiro do sujeito, verdadeiro parceiro porque é quem orienta e define suas escolhas amorosas, e as outras escolhas que cada um faz na vida, assim como define os modos singulares de estabelecer laço social.

Temos, então, que a parceria implica em uma articulação ao outro, cada um com seu resto inassimilável e diferenciado de gozo.

Maria me consultou atendendo à orientação da psicóloga da Delegacia da Mulher. Era a terceira vez que ela procurava a Delegacia depois de ter sido agredida fisicamente pelo namorado. Tinha demorado para pedir a entrevista comigo porque sentia vergonha das marcas roxas que deixara no seu corpo a última surra que o namorado lhe dera. “Ele é um bom rapaz, trabalhador, estudioso... Eu sei que ele me quer e que quer casar comigo, mas ele é muito ciumento e perde a cabeça... Mas eu não faço nada, eu não dou motivos para ele ficar assim... Depois ele fica arrasado, pede perdão, diz que me ama e que não quer me perder...”.

Nas duas primeiras oportunidades em que ela procurou a Delegacia da Mulher foi, primeiro uma irmã, e depois uma amiga, que insistiram e a acompanharam para fazer a denúncia. Ela não teria ido por iniciativa própria porque viu ele desesperado pedindo perdão. Da última vez ela foi sozinha porque ele a empurrou pelas escadas do prédio quando ela tentou escapar do apartamento. Nas três oportunidades, dias mais, dias menos, ela retirou a denúncia.

À época da primeira entrevista, já tinham se passado três meses da última agressão e, nesse tempo, ela tinha se encontrado com ele em algumas oportunidades para “passar essa relação a limpo”. Contudo, procurou a psicóloga da Delegacia que a atendera da última vez porque tem medo de voltar a acreditar nele e que essa história se repita.

Maria está certa quando ela diz que há uma relação que tem de ser passada a limpo, só que essa relação não é unicamente a que ela tem com o namorado. É fundamentalmente a relação dela com seu próprio gozo sintomático, esse gozo que se lhe impõe na repetição de ficar cristalizada na posição de mulher que apanha. Muitas vezes já temos lido e ouvido no ambiente psicanalítico que cada um é vítima do próprio gozo. Isto constitui toda uma orientação na nossa clínica, não só com mulheres que apanham repetidamente do mesmo agressor ao qual repetidamente procuram. Isto está colocado para todo mundo.

Contudo, acho importante destacar que o fato de cada um ser vítima do seu próprio gozo não exclui a possibilidade de alguém vir a ser vítima do gozo de um outro a quem, às vezes, nem sequer conhece. Uma parte da recente intervenção de Sérgio Laia, em nossa Seção, dá conta de algo que está hoje presente na violência masculina e que não podemos desconhecer. Eu até diria que a intervenção de Sérgio se inscreve na tradição do que Pierre Naveau nomeia de querela doutrinal que se desenvolve em torno do falo. A intervenção de Sérgio se engaja nesse debate contemporâneo sobre a significação do falo ao assinalar a desvalorização dos significantes fálicos nestes tempos. Nesse sentido, podemos pensar que o namorado de Maria, com suas reações violentas responde, da pior maneira, à perda de potência fálica que, de um lado, o faz afundar no inferno dos ciúmes e, de outro lado, o faz reagir de modo violento localizando em Maria a causa da fragilização fálica.

Em uma sessão, Maria se surpreendeu ao se escutar dizendo que já faz tempo que ela não mais acredita nas promessas que o namorado lhe faz, e que se ela continua aceitando se encontrar com ele é porque o tom da voz, com que ele lhe faz as promessas, a captura. E continua dizendo que quando criança e adolescente a mãe e as irmãs lhe diziam que ela era a única que acreditava nas promessas que o pai fazia. “Nunca entendi porque elas me falavam isso. Mais ainda, acho que nunca pensei que meu pai me prometesse algo. Eu adorava o tom de voz do meu pai quando ele falava comigo e só comigo. Com minhas irmãs ele não falava desse jeito. Essa voz de galã era só comigo”.

O que foi que deu liga para a relação de Maria se sustentar desse modo? Isso que dá liga entre dois seres falantes é o que se escreve do encontro? E se for isso, o que foi do encontro com esse rapaz que se escreveu em Maria que possa ser lido com relação a sua fantasia fundamental, essa que numa análise pode ser atravessada?

1 Texto apresentado na atividade Noites da Biblioteca, da EBP-SC, em 7 de março, 2018.

2 NAVEAU, Pierre. O que do encontro se escreve: Estudos Lacanianos, Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.

   
   
 

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