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O encontro da Ação Lacaniana, fruto da aposta de conversação entre a Seção Rio e a Rede Pública de Saúde Mental carioca, marcou um ponto de inflexão no que diz respeito às nossas interrogações quanto ao lugar da psicanálise e dos psicanalistas na cidade e sua contribuição possível. Ainda estamos recolhendo as ressonâncias do que para nós foi uma oportunidade de experimentar o jogo topológico entre o dentro-e-fora da Escola de modo vivaz.
A realização da conversação foi uma construção em três tempos, com o suporte de duas instituições, a EBP e o Instituto Phillipe Pinel, que acolheu duas preparatórias. Sua construção foi atravessada pelo tempo e pelo espaço de modo contingente. Tanto os argumentos, quanto a dinâmica, se foram definindo no fazer coletivo, com a participação de cada um, todos apoiados na episteme de nosso campo.
A partir da sugestão de Andrea Vilanova, usamos a interrogação de Lacan em O Triunfo da Religião, acerca de como a psicanálise aborda o avanço do discurso religioso como efeito colateral diante do mal-estar produzido pelo avanço da ciência sobre o real. O tema encontrou eco na proposta de interlocução da comissão dirigida à rede de saúde mental, num momento em que a cidade enfrenta os efeitos do desmantelamento das políticas públicas de saúde, com a presença marcante do discurso religioso em todas as esferas públicas. Os textos de Lacan1, Freud2 e Carlo Viganò3 compuseram as referências que colocaram a trabalho uma comissão decidida a promover um espaço de encontro com a cidade e de leitura da polis, a partir das atuais reviravoltas das políticas públicas no campo da saúde mental, onde muitos analistas se colocam a trabalho.
O atual cenário do Rio de Janeiro acompanha uma realidade nacional de desestabilização político-institucional. Isso nos afeta como cidadãos pelos efeitos de desassistência e penalização das camadas mais vulneráveis da população, com suas consequências para toda a sociedade. Além disso, nos interroga sobre como a política do inconsciente se entrelaça com as políticas públicas, a partir dos lugares que sustentamos na polis.
Rachel Amin, Diretora de Cartéis e Intercâmbios da EBP-RJ, pergunta como a psicanálise de orientação lacaniana poderia contribuir para a leitura de tais impasses e toma como bússola a advertência de Miller: “Não há clínica do sujeito sem a clínica da civilização”. Verbena Dias, uma das relatoras, acrescentou à discussão, nas preparatórias, a partir de sua leitura de Viganò, a ameaça do cerceamento ao exercício de uma posição desejante como risco de retrocesso e perda dos avanços da Reforma Psiquiátrica.
Cristina Frederico lembrou a importância de interrogarmos se a incidência da psicanálise na política, de modo mais amplo, coincide ou não com a política do sintoma e Clarisse Boechat, participante da Comissão Nacional da Ação Lacaniana, chamou a atenção para o desafio de darmos um passo além, a fim de não nos contentarmos apenas em dar visibilidade ao desmonte, mas também apontar as saídas que se desenham, nas brechas e sulcos por onde o discurso analítico opera seus giros, na clínica e na cidade.
Mariana Mollica destacou, a partir de Viganó, o sintoma singular como a chave de leitura da nova clínica para a saúde mental, por implicar na maneira pela qual o sujeito fala de seu sofrimento, por meio de designações nominalistas de seu mal-estar.
A segunda preparatória, também no Instituto P. Pinel, consistiu em nova roda de conversa, na qual Dóris Diogo, membro da EBP, coordenadora do programa geração de trabalho e renda do CPRJ, e Eduardo Vasconcelos, cientista político e professor da UFRJ, sustentaram perspectivas distintas acerca das questões colocadas na primeira etapa.
Doris Diogo deu início à segunda preparatória, lembrando conquistas históricas no campo da saúde mental ao longo de trinta anos, com a reforma psiquiátrica que, mesmo ancorada nas instituições do Estado de direito, corre sério risco de descontinuidade devido a interesses políticos e religiosos. Apresentou um fragmento clínico em que o usuário passou de posição de objeto à posição de sujeito, a partir da nomeação "homem de Deus", inventada por ele para fazer para si mesmo um lugar e um laço social extraídos de suas experiências religiosas, o que, no momento, favoreceria sua estabilização. Vemos aqui como a religião pode fazer calar e ofertar um nome/lugar que favoreça fazer laço social, o que, no fazer do analista, junto ao analisante, implica em não defendê-la, nem degradá-la, mas apostar em uma construção singular que possibilite tratar o gozo que retorna.
Eduardo Vasconcelos nos ofereceu um panorama fundamental, a partir de sua pesquisa, sobre o avanço das religiões neopentecostais no Rio de Janeiro, entre as camadas mais vulneráveis da população, como efeito do descaso por parte do poder público e da quase inexistência de políticas de saúde e assistência. Eduardo faz de sua trajetória de militância na Saúde Mental uma investigação permanente acerca dos pontos de sustentação das práticas institucionais, a partir dos discursos da sociologia, psicologia e psicossociologia.
Por fim, o terceiro momento de nossa ação lacaniana aconteceu no Instituto Pró-Saber, instituição parceira da Seção Rio, onde realizamos a conversação. Partimos da apresentação de Eduardo Vasconcelos, que avançou mais ainda em torno do tema da expansão da presença de dispositivos estabelecidos pelas igrejas neopentecostais, que suprem, a partir de projetos assistenciais, as falhas deixadas pelo poder público. Exemplo disso é a existência de templos religiosos com acolhimento 24 horas, além da incidência maciça do discurso religioso concorrendo para a produção de suturas no tecido social, ao oferecer o suporte de “identidades compactas” ao alcance dos sujeitos.
Andrea Vilanova continua, apresentando o argumento de O Triunfo da Religião, com ênfase no convite à ação lacaniana lançado por Jacques Alain Miller como uma interrogação dirigida a cada psicanalista, a partir do ensino de Lacan, acerca do que seria atual quanto à presença da psicanálise na civilização. Ela destaca que “responder a isto é um desafio que em nossa Escola acolhemos, não temos alternativa, é a escolha forçada que toca a cada um”.
Fernanda Otoni Brisset (EBPMG| PAI-PJ\\BH), convidada como debatedora, destaca do cenário atual a desmontagem de serviços, a desassistência à população e a precarização da política. Diante de tal desordem, muitos serviços ficam permeáveis às novas tecnologias, que reinstalam o ideal do tratamento moral, não raro de cunho religioso. Diz que Eduardo Vasconcelos destacou como a oferta da religião pode parecer eficaz quando oferece identidades pré-moldadas, em meio à realidade da falência das políticas públicas, falência do ideal de um projeto de Estado de bem-estar social. Fernanda lê essa suposta eficácia com Lacan, quando ele diz que “a religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona”, em O Triunfo da Religião. Lembra como a clínica atual mostra que “as identificações não funcionam como antes, e a pulsão exige outras formas de engendramento e satisfação. O corpo se destaca e se agita como evidência clínica: corpos errantes, ligações em curto circuito, desconexões no laço social, compulsões, precariedade simbólica, acontecimentos de corpo e passagens ao ato que interrogam as formas institucionais constituídas no ideal da reforma psiquiátrica e do Estado de bem-estar social.
Fernanda alerta: “para alguns, o encontro com a religião pode funcionar como um santo remédio, como apresenta Dóris Diogo, com o caso homem de Deus abordado nas preparatórias. Mas isso não significa tomar a religião como um remédio universal, como uma receita para todos. Precisamos interrogar a macropolítica e oferecer resistência quando propostas de tratamento religioso, por exemplo, para usuários de álcool e outras drogas, ganham a forma universal de uma política pública”.
Fernanda traz ainda ao debate a transferência, pelo seu lugar central na clínica em saúde mental como uma evidência analítica, mesmo para os não analistas. “Como falar de transferência hoje, diante das mutações na ordem simbólica, do desarranjo no campo das identificações e na suposição de saber?”. Prossegue dizendo que “quem endereça sua desordem a um serviço, supõe ali algo que dê liga. Uma ligação libidinal a alguém, a um nome, a um fazer. O sujeito supõe ali algo que lhe interessa e, contingencialmente, um laço pode vir a se fazer com o que não se coletiviza, como sublinhou Andrea”.
Por fim, assinalou que SOS SAUDE MENTAL pode ser lido como um pedido de socorro acionado pelos trabalhadores, afirmando que “a ajuda pela psicanálise só pode ser uma “ajuda contra”. Trata-se de um convite para irmos mais além do projeto militante, servindo-nos do furo que o constitui”. Conclui: “se sabemos, com Lacan, que a função da religião é secretar sentido, entendendo a militância também como uma profissão de fé, como nos servirmos do furo desse triunfo para deslocar tal movimento? Se a nossa heresia não nos permite fazer da fé um lugar para botar a mão, ao botar a mão no freio de emergência, visamos abrir um intervalo para podermos nos habituar a esse real. É o que ensina a clínica da loucura de cada um, na solidão da experiência analítica”.
A conversa com o público presente, cerca de cem pessoas, foi muito proveitosa, apesar do recorte de tempo que, por ser breve, produziu certo efeito de forçamento, de abertura para um depois. A discussão girou em torno de questões acerca do funcionamento cotidiano dos dispositivos de atenção à saúde mental, além de interrogações sobre a eficácia dos modelos de assistência, com a problematização do sucateamento dos serviços e dos recursos. A valentia e a determinação desses trabalhadores foram tocantes, o que se evidenciou por sua vontade de tomar a palavra, a partir de nosso convite à conversa.
Se, por um lado, os dramas do quotidiano pesam sobre seus ombros, por outro, parecem-nos advertidos de que a precariedade comporta uma margem de invenção possível, porque é nas brechas, nas fissuras, que podem brotar as soluções, se estivermos advertidos.
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