|
No fechar das cortinas do ano de 2017, um conjunto de portarias e atos do Ministério da Saúde promoveu alterações profundas na Política de Saúde Mental que vigora no Brasil há mais de 15 anos, apoiada e regulamentada pela Lei 10216 de 2001. As propostas assinadas recentemente pela Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde, pactuada na Comissão Intergestora Tripartite – CIT, incluindo o modo como a previsão orçamentária será alocada, privilegiam a expansão de leitos em hospitais gerais e psiquiátricos, bem como as comunidades terapêuticas, em detrimento dos dispositivos substitutivos vinculados à chamada rede de atenção psicossocial.
A construção de uma rede
Vale lembrar que o movimento da reforma psiquiátrica, iniciado no final nos anos 70 e início da década de 80, tornou-se um marco não só na história da saúde mental, mas um marco político no Brasil. Foi ato de extrema importância, ao romper com o paradigma hospitalocêntrico, normativo e disciplinar, que funcionava apoiado numa lógica de segregação.
Com a reforma psiquiátrica brasileira, foram instauradas novas formas de cuidado e de assistência, formas democráticas, contrárias às concepções reducionistas sobre saúde e normalidade fundamentadas em marcadores biológicos ou de base moral, sem considerar uma dimensão “fora do normal”, ou das regras que habita o falante. Como tratar a exceção sem seguir a via da segregação? Uma primeira consequência da torção na lógica da segregação foi acolher de outro modo um contingente de sujeitos exilados do Outro Social, conferindo legitimidade à palavra do louco confinado ao silêncio por muitos anos. Abriu-se uma brecha para trilhar e manejar princípios e categorias universais, sem abrir mão de levar em consideração as particularidades do sujeito. Desse modo, a loucura pode ser pensada para além de uma dimensão até então assimilada pela vertente deficitária, positivando soluções não estandardizadas e as pequenas invenções de que cada um lança mão para escavar um lugar no mundo.
Sob as diretrizes da reforma psiquiátrica brasileira foram implementadas experiências de base territorial1 e comunitária, em consonância com a orientação e as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), ao longo das três últimas décadas. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as Unidades de Acolhimento, os Consultórios de Rua, as Residências Terapêuticas, são alguns dos dispositivos substitutivos ao manicômio reconhecidos internacionalmente e coerentes com uma lógica de inserção social. Segundo dados recentes2, a cidade do Rio de Janeiro, que já teve 5 mil leitos psiquiátricos, hoje tem cerca de 600, a maioria com pacientes de longa permanência. Atualmente, não há mais nenhum hospital contratado da rede privada. Aproximadamente 15 mil pacientes são atendidos nos 33 CAPS da cidade do Rio; há 1.500 acolhimentos noturnos nos 8 CAPS III; 86 Residências Terapêuticas abrigam 496 usuários; 8 mil, com problemas relacionados a drogas, recorrem aos CAPS-AD, às UAA, aos abrigos, ou são atendidos na Atenção Primária os nos consultórios na rua.
Uma prática a partir de muitos
No lugar do Um hegemônico do paradigma centrado no isolamento e na contenção da loucura, o múltiplo passou a vigorar tanto nas abordagens quanto no trabalho estruturado sob a modalidade de equipes multiprofissionais. A reunião de supervisão se tornou um espaço de aproximação de diferentes abordagens e profissionais de diversas formações. Na minha experiência, enfrentei polarização e antagonismo entre a política e a clínica ou entre a política da reforma e a psicanálise, tensões essas que nunca foram eliminadas, mas puderam ser tratadas quando não se respondia pela rivalidade imaginária.
Muitas vezes o coletivo de profissionais era atravessado por fenômenos de grupo, demonstrando assim que não basta romper com o Um hegemônico e substituí-lo pelo múltiplo, quando ocorre ao múltiplo aspirar ao todo. O debate tornava-se possível quando ao menos um encarnava uma exceção ao grupo e um vazio de saber levava o debate em direção ao novo.
Nessa perspectiva, o debate em torno de competências e identidades profissionais cedeu lugar à função de colocar o múltiplo a serviço do singular. Ou seja, abriu-se a possibilidade de uma prática entre vários construindo respostas às situações enfrentadas no dia a dia do funcionamento de um CAPS, sem impingir uma lógica normativa e totalitária quanto ao trabalho da equipe. Constituiu um avanço creditar à reunião de supervisão a função de se tornar um elemento chave na organização e funcionamento de um CAPS.
Foram muitas conquistas, muitos aprendizados e um exercício de conviver com as diferenças próprias a um campo plural e multifacetado. Na minha experiência, convivi com profissionais que, movidos pelo desejo do novo, investiram e se comprometeram na construção de uma rede de dispositivos na qual se privilegiou uma prática feita a partir de muitos.
Suponho que não só o significante “reforma” ou “movimento dos trabalhadores de saúde mental” os mobilizou. De algum modo, havia um horizonte novo que se descortinava e, ao mesmo tempo, um ponto cego que, de algum modo, operou como causa de desejo. Era tempo de se deixar surpreender, sustentando discussões que se moveram a partir do impossível de classificar, do impossível de eliminar a contingência, tempo de se abrir a escutar o impossível que tocava a cada um.
A meu ver, a psicanálise pôde contribuir para o campo da reforma psiquiátrica quando analistas de orientação lacaniana não recuaram diante da psicose; não recuaram de sustentar a prática clínica lacaniana em locais pouco convencionais e nem sempre favoráveis à prática psicanalítica; não abriram mão da posição para aprender com a psicose e se implicaram em transmitir as particularidades de um caso recolhendo e utilizando exemplos trazidos por outros; não recuaram localizando as suplências que operam para tornar mais estável a existência de cada um e circunscrevendo o que é próprio e peculiar no modo como cada um faz laços sociais.
Ao tomarmos como bússola a orientação pelo sem sentido do sintoma, colocaram-se em relevo as pequenas e singulares invenções da psicose.
A atualidade
A partir das recentes portarias e atos que incidem diretamente no campo da saúde mental e no tratamento de álcool e drogas, constatamos um risco do recrudescimento de estratégias higienistas, moralistas e segregacionistas para tratar diferentes manifestações do real da época em que vivemos. Verificamos ainda que, em nome da terapêutica e da readaptação social, corre-se o risco da expansão das comunidades terapêuticas que atendem de uma só vez a interesses econômicos, políticos e religiosos que se contrapõem aos avanços promovidos pela Lei 10216/2001 e ferem os princípios que regem a reforma psiquiátrica brasileira.
As comunidades terapêuticas não estavam, até o final de 2017, submetidas a qualquer regulação pelo Ministério da Saúde.
Por outro lado, nos últimos anos, a Lei 10.216/2016 regula os dispositivos que constituem a chamada rede de atenção psicossocial. Importante destacar que um elemento ordenador dos dispositivos da rede, bem como políticas públicas que se tornaram diretrizes da reforma, foram permeáveis a efeitos produzidos por experiências transformadoras que antecederam sua formulação. Nessa perspectiva, destaca-se que, a depender da articulação que um elemento regulador mantém com a pluralidade de dispositivos por ele regulados, aumenta-se a margem de uma relação “porosa”, não totalizante, entre o um e o múltiplo. Estamos diante da interrupção dessas condições e modos de funcionamento?
Mais do que nunca, torna-se crucial que os resultados recolhidos ao longo desses últimos 30 anos de experiências e projetos regidos pelas diretrizes da reforma – que dispensaram a clausura e o isolamento social, sem com isso deixar de recorrer à internação sempre que houvesse indicação clínica – sejam debatidos com a opinião pública, diferentes instâncias e segmentos da sociedade.
A psicanálise tem um interesse convergente com os princípios da reforma, que se opõem a medidas que representem uma ameaça aos direitos civis; preza um regime democrático que não implica necessariamente consenso e que assegura a liberdade de expressão, da palavra. Ao analista cabe a defesa de uma prática que visa acolher e abordar justamente o que no falante difere, excede e está desidentificado do Outro Social. Seguindo esse princípio, tão caro à psicanálise, é que, diante de acontecimentos recentes, cabe ao analista estar presente mais uma vez, nos debates que lhe dizem respeito e ao mundo em que vive, sustentando uma posição ética e política vital, que deixa a psicanálise sempre êxtima ao status quo. |
|