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Pergunta: Temos larga experiência e um grande arcabouço conceitual no que diz respeito às propriedades do cartel de subverter o discurso do mestre. Hoje, no entanto, a lógica de pequenos grupos, instáveis e horizontais, é o próprio princípio do laço social, e não a sua subversão. Como pensar o cartel e sua propriedade subversiva nesse contexto?
Resposta: O cartel, cuja inspiração Lacan foi em parte buscar nas iniciativas de Bion e Rickman durante a guerra e no exemplo ético dado pelos ingleses diante da barbárie nazista, foi de fato uma grande invenção, como tentativa de ir além da simples produção de saber, e como inclusão de um juízo crítico sobre a própria estrutura dos grupos, em eco ao clássico freudiano de 1921, Psicologia de Grupo e Análise do Eu. A cada vez que um cartel funciona como cartel, o que não ocorre sempre que os cinco parceiros se reúnem, acontece esse acordo entre a produção de saber e uma prática crítica do grupo. É a partir disso que se pode − e de fato se tem feito isso ao longo do tempo −, pensar o cartel topologicamente, isto é, como um instrumento que passa de uma das suas faces, produção de saber, à outra, porta de entrada na Escola, sem que se saiba exatamente onde está o ponto de passagem.
É claro que o cartel é também um grupo e funciona como grupo, se consideramos a sua tendência natural. O que pode haver de cartel, segundo o que foi desejado por Lacan, é um esforço, não acontece naturalmente. Em certo sentido, o funcionamento do cartel tem uma dimensão ideal, como algo que se persegue sem se alcançar inteiramente. O mais importante, me parece, é que o cartel conta com duas bases bem diferentes dos grupos: a primeira é a atuação dos mais-um, e a outra é o fato de que o cartel não é somente um aprendizado, mas é também um ensino, a partir do momento em que os trabalhos produzidos retornam para a Escola. Temos antes de tudo, portanto, que localizar o ponto onde o cartel se distingue desses grupos, ou seja, o ponto onde a dimensão do ato prevalece nos cartéis.
Você chama também a atenção para um fenômeno de grande importância, que é a coincidência atual entre os cartéis e os pequenos grupos contemporâneos como “princípio do laço social”. A subversão que em 1964 era, se posso falar assim, o aspecto “ato” dos cartéis, é hoje um sintoma dos grupos, ou seja, já não é mais subversão, pelo menos aparentemente.
Isso nos remete, naturalmente, à importante conferência de Jacques-Alain Miller no Congresso da AMP em Comandatuba, Uma fantasia, onde ele apontava a coincidência atual entre o discurso do analista e a civilização, no sentido de que ambos mostram, em diversos dos seus aspectos, uma dominância do objeto. Há certamente mais de uma dominância do objeto, dependendo de que objeto se trata. O objeto que Lacan via no zênite da civilização atual não é o mesmo da diferença absoluta que é buscada na experiência analítica.
P.: Ao longo da sua experiência na Escola e considerando o momento atual, como enxerga as funções do cartel como “porta de entrada” e como “dispositivo de produção de saber” na EBP? Haveria uma tensão entre esses dois termos?
R.: Lacan definiu o cartel como porta de entrada na Escola: os candidatos a participar da Escola Freudiana de Paris faziam antes parte de um cartel, e esse trabalho era uma forma de apresentação à Escola. A decisão de entrar em um cartel nunca era separada do desejo de contribuir para a Escola, para essa Escola e não outra. A entrada na Escola era simultaneamente a oferta de um projeto de trabalho. Creio que isso é uma maneira de distinguir o cartel dos grupos de estudo, cujo Outro, ao invés de uma Escola, é muitas vezes o próprio inspirador do grupo, de quem se espera um ensino. O cartel inverte essa relação, quando a Escola, ao invés de simplesmente dispensar um ensino, passa na verdade a recebê-lo, sob a forma dos trabalhos construídos nos cartéis.
O cartel era e continua sendo um “dispositivo de produção de saber”, claro. E existe de fato, como você diz, uma tensão entre os dois termos, produção e porta de entrada na Escola.
Resta saber de que tensão se trata. Creio que devemos pensá-la como uma tensão dialética, no sentido de que o interesse em participar mais diretamente na Escola é uma das facetas da decisão de produzir saber. No meu entender, uma das principais tarefas da diretoria de cartéis é inicialmente procurar saber se esse duplo aspecto ainda se mantém, e, em seguida, a de manter e agalmatizar essa tensão (será que este verbo já foi dicionarizado...?), de tal forma que vigore sempre o princípio segundo o qual não há cartel sem Escola. Amputado da Escola, mesmo consideradas as suas dificuldades, o cartel perde a sua alma. Não estou certo de que as nossas Jornadas de Cartéis, se se limitam à leitura e discussão de trabalhos, têm conseguido superar essa dificuldade. Aliás, não é bem uma dificuldade, é um desafio permanente.
Quando essa tensão se afrouxa, a produção de saber, por um lado, tende ao formato dos grupos de estudos, enquanto a apresentação à Escola se torna burocrática. Tem-se então a hegemonia do discurso universitário, no sentido, nem tanto de um poder concedido à universidade stricto sensu, mas na anulação da dimensão sintomática.
P.: Como pensar a função da presença de um membro no cartel, que pode, inclusive, não ser o do mais-um? Tal função pode ser exercida por outras ferramentas, tais como as jornadas de cartéis, o acompanhamento dos Diretores de Cartel das Seções? Ou não?
R.: Essa sua pergunta é muito bem-vinda, pois me leva a esclarecer melhor o que disse antes. Ela me remeteu a um comentário feito anos atrás por meu amigo Bernardino Horne, em um dos conselhos da Escola onde trabalhamos juntos: “onde estiver um membro da Escola, dizia Bernardino, aí estará a Escola”. Dito por Bernardino, com a simplicidade e a firmeza que conhecemos, a frase tinha um acento mais militante do que solene, ao contrário do que pode parecer à primeira leitura. Estávamos discutindo, se me lembro bem, sobre a responsabilidade que implica ser membro da EBP.
Na sua pergunta está embutida uma outra: o que fazer para tornar a Escola presente e atuante nos cartéis? Não vai bastar, evidentemente, que os mais-um sejam membros da Escola, embora isso seja compreensível como disciplina, isto é, como remédio prático a uma tendência à dispersão tão nociva quanto o enrijecimento burocrático. A rigor, nada impede que o membro da Escola passe a operar, mesmo sem se dar conta, como chefe de grupo, como inspiração, ou como ponto de convergência dos laços transferenciais que se criam. Como foi dito acima, o grupo é natural, no sentido de que qualquer reunião tende ao grupo, enquanto a Escola é um esforço permanente e sempre inacabado, que somente se sustenta quando, à semelhança da pulsão, não conhece dia nem hora, como disse Lacan.
Penso que é preciso que a Escola funcione sempre como uma transcendência para os cartéis, se posso expressar-me assim. Assim, os cartéis poderão ser o que, me parece, devem ser: uma particularização da Escola.
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