|
Preparando o Wake. Assim Raúl Antelo1 intitulou sua fala na Noite de Biblioteca que aconteceu no dia 9 de novembro na Seção Santa Catarina da nossa Escola, como atividade preparatória ao XI Congresso da AMP2. Escrever este texto é efeito desse encontro.
Naquela noite, as pessoas que iam chegando eram recebidas pela sonoridade peculiar da Ursonate, poema pré-lógico de Kurt Schwitters. Assim se anunciava o que viria na sequência para aqueles que, com Raúl Antelo, visitaram algo do ambiente artístico-cultural em que James Joyce gestou sua obra. “Pareceu-me interessante situar e contextualizar de que modo Finnegan’s Wake incide na sensibilidade e no pensamento de Lacan”, nos disse ele.
Ele o fez de maneira admirável, sustentando e ilustrando aquilo que dizia com provas materiais, por assim dizer: exemplares das revistas Tel Quel e transition, onde ele destacava e comentava uma capa, um poema, um texto, a presença de um autor... Dessa forma, foi despertando sensibilidades e pensamentos ante essa outra coisa3 que Joyce fez da/na/com a literatura e também ante essa ainda outra coisa que Lacan fez com o sintoma ao segurar a mão de Joyce naquele ano de 1975-1976, quando conduziu seu vigésimo terceiro seminário. Efeito Wake? Creio que é uma boa maneira de dizê-lo.
Voltamos com ele a 18 de novembro de 1975, primeiro dia do Seminário 23. “Sinthoma é uma maneira antiga de escrever o que posteriormente foi escrito sintoma.” 4 Lacan começa assim, com essa frase. Será que alguém supôs o aggiornamento que estava por vir? Do sintoma, da clínica, do final de análise...
Logo no início o destaque à palavra criada por Philippe Sollers para falar dessa outra coisa joyceana - l’élangues - e a interpretação de Lacan: “Suponho que, assim, ele procura designar alguma coisa como essa elação que, dizem-nos, está no princípio de não sei qual sinthoma que, em psiquiatria, chamamos de mania.”5 Em Sollers e Lacan encontra-se essa forma de falar do elã (l’élan) das línguas (langues), ou seja, do seu “movimento súbito e espontâneo”, de seu “impulso”, da sua “expansividade”6, em Finnegan's Wake.
Raúl sublinhou que nesse fazer com a língua que o notabilizou Joyce não estava, no entanto, sozinho. Segundo ele, os irmãos Campos – Augusto e Haroldo – são responsáveis pela disseminação dessa ideia no Brasil, a partir do enaltecimento do irlandês como autor individual, de ruptura. A fala de Raúl veio demonstrar “exatamente o contrário”, ou seja, que Joyce fez parte de “uma ação anônima, coletiva, de artistas de vanguarda que tentavam uma nova sensibilidade”7, num esforço para ultrapassar o positivismo. Joyce viveu vinte anos em Paris, de 1920 a 1940. Viveu, portanto, a efervescência da vanguarda francesa. Participou ativamente, por exemplo, da revista literária experimental francesa transition8, lançada em 1927 em língua inglesa por Eugene Jolas e Maria MacDonald em Paris, em cujas páginas e capas encontramos também autores e artistas tais como Picasso, Juan Miró, Marcel Duchamp, André Gide, Mondrian, Man Ray, Fernand Léger e Gertrude Stein, para citar apenas alguns.
No primeiro dos vinte e sete números publicados entre 1927 e 1938 estava o fragmento inicial de Work in Progress, de Joyce. O número 27 trazia o décimo-oitavo e último fragmento, com capa e texto de Kandinsky, além de textos de Samuel Beckett, André Breton, Hans Arp, Franz Kafka, Anaïs Nin, Le Corbusier, Max Ernst, Paul Klee, e vários outros escritores, poetas, artistas. Somente no ano seguinte, 1939, o Work in progress seria publicado em livro sob o título Finnegan’s Wake.
A revista constituiu-se, portanto, como instrumento e como testemunha da ação coletiva de uma vanguarda que incluía Joyce, como Raúl Antelo destacou. A despeito da singularidade da obra joyceana, o autor irlandês estava muito bem acompanhado no movimento de ruptura com o positivismo, na busca de novas experiências na relação com a palavra e a escrita e no exercício de uma liberdade sem precedentes em relação ao sentido.
Nesse sentido, é muito importante o manifesto “Proclamation”, publicado em junho de 1929, em defesa dessa liberdade. Nele, os autores declaram que “o criador literário tem o direito de desintegrar a matéria primordial das palavras a ele impostas por livros-textos e dicionários (...) de usar palavras de sua própria confecção e de desconsiderar as leis da gramática e da sintaxe”9. Uma declaração em favor de l’élangues, que são frutos do movimento de expansão das línguas, em que elas se encontram, se enlaçam, se atravessam, construindo um texto que escapa do campo do sentido para convocar, como em Finnegan’s Wake, a materialidade da voz, da leitura em voz alta.
Embora só tenha se encontrado uma vez com Joyce, Lacan se interessou muito pelo que ele fez com o seu sinthoma e buscou aprender com isso. Segundo ele, apesar de Joyce tê-lo feito, “é claro, no olhômetro”, reconheceu sua natureza e não se privou “de usar isso logicamente, isto é, de usar isso até encontrar seu real, até se fartar”10. Mais de quatro décadas após Lacan apresentar seu seminário de 1975-1976, e mais de setenta anos após a morte de Joyce, continuamos causados pelo seu trabalho e continuamos nos deparando com oportunidades de aprender ainda mais com seus legados. Na Noite de Biblioteca de 9 de novembro vivemos mais um desses momentos privilegiados, a partir da escuta primorosa e da precisão teórica do professor Raúl Antelo. Mas quem não participou terá acesso ao vídeo, graças aos recursos da tecnologia, no novo site da Escola, que está vindo aí.
|
|