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Cultura: "É a soma de operações e normas que distanciam nossa vida de nossos antepassados animais e que servem a dois fins: a proteção do ser humano frente à natureza e a regulação dos vínculos recíprocos entre os homens".1 (Freud)
“Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.
Cada um destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.”2
(...)
“Em um mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política”.
I
A expressão liberal à moda antiga, usada por Freud para descrever a si mesmo em uma carta ao seu correspondente da maturidade Arnold Zweig, não pode ser entendida literalmente, me parece, sem levar em conta um acento irônico, que incidiria sobre o qualificativo “à moda antiga”, e indicaria certa distância entre Freud e o liberalismo na sua forma clássica.
Freud não era cem por cento liberal, como inspiração direta do iluminismo, porque não acreditava em nenhum bom encontro final entre a razão e as exigências das pulsões. Neste sentido, se aproximaria, como já se apontou, do que foi chamado de “iluminismo sombrio”, ou seja, certa concessão ao oculto, ao lado contrário ao das luzes.
Isso, se não fosse ironia.
Se a ironia quer dizer a expressão do contrário daquilo que se quer significar – temos um exemplo dado por Freud, quando escreveu, por imposição da Gestapo, uma declaração de que fora bem tratado durante seu interrogatório:
“Recomendo vivamente a Gestapo a todo mundo”.
Sou liberal, sim, senhor – poderia ter dito Freud -, mas também sei que há um elemento constante que nega a esperança de um encontro perfeito entre os corpos, os semelhantes e a cultura3 .
II
Politicamente, a psicanálise não está a serviço de nenhum partido. Quer dizer, não proclama que uma das partes nas quais se divide o hipotético universo político tem toda razão, e que um dia essa parte vai ser o todo.
Sendo assim, também não defende nenhuma universalidade capaz de tornar pardos todos os gatos, tanto de noite quanto de dia.
É fácil dizer que os psicanalistas estão do lado da democracia, ou do estado de direito, ou da paz social, ou da igualdade, se não se acrescenta que essas palavras de ordem unitárias – ou seja, o saber como totalidade – são sempre precárias, apesar de “imanentes ao político como tal”, como indicou Lacan em O avesso da psicanálise4 . Aliás, só são unitárias porque são precárias. E são sempre precárias porque, na verdade, o universo resiste a constituir-se como universo.
Então: se não está nem no universal e nem na parte, onde se situa a psicanálise em relação à política? Parodiando Freud:
Se São Cristóvão carrega o Cristo e Cristo carrega o mundo, onde é que São Cristóvão apoia os pés...?
Para responder a essas questões, nunca uma expressão popular – nossa, brasileira – foi tão oportuna: para a psicanálise, o buraco é sempre mais embaixo. É uma espécie de axioma.
Há um buraco, portanto. E ele está em toda parte, como na explicação que dava Ariano Suassuna para a sua fobia de aviões, quando alguém comparava o perigo efetivo dos aviões ao dos carros, sempre arriscados a topar com um buraco numa curva da estrada:
“E avião, que pra onde vai leva um buraco embaixo...?”
Dito de outra forma, o buraco, antes de constituir uma ameaça à viagem, faz parte integrante dela, ou é até condição para ela, como o sabem perfeitamente os fóbicos.
O buraco é sempre mais embaixo, em confronto permanente com o vazio do simbólico, como nos mostra a clínica das neuroses, o que nos foi exemplarmente demonstrado na explicação de Freud sobre o luto. Em 1920, Freud chamaria essa constante de pulsão de morte. Anos depois, Lacan situaria o buraco no registro do real.
III
Nos nossos dias o liberalismo, agora acompanhado do prefixo neo – que, aliás, ninguém assume para si – já não está recoberto pela respeitabilidade que parece ter tido na época em que se mostrava como um rebento prático do iluminismo, e nem dá mais a impressão, se é que já deu, de ser uma estrutura natural, ou uma expressão da liberdade.
Hoje em dia já não seria possível ao liberal, na sua versão neo, resgatar o tom heroico que teve para o jornalista paulista Líbero Badaró em 1830, quando, ferido mortalmente em um atentado, pronunciou suas últimas palavras:
“Morre um liberal, mas não morre a liberdade”.
Ao psicanalista de hoje, não basta cultivar a ironia, ou ocupar uma posição que possa simplesmente ser chamada de irônica, uma vez que o neoliberalismo já não ostenta nenhuma bandeira iluminista e nenhuma semelhança com o funcionamento da natureza, porque lhe basta o pragmatismo cínico do mercado, diante do qual a ironia é sem eficácia.
No meu entender, uma das tarefas do Movimento Zadig, dando sequência à iniciativa de Jacques-Alain Miller, é tentar responder à questão do desejo político do psicanalista, no sentido de algo situado além da ironia. Além da ironia estará talvez o testemunho como forma de ação. |
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