[Radar Carterizante – Nº8] Produção de Cristiana Gallo, Rodrigo Camilotti Rodrigues do Paraná, Flávia Cêra e Fernanda Turbat

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Colhemos, neste Radar, frutos das Jornadas de cartéis realizadas em 2016 na Seção SP e na Delegação PR.

São quatro trabalhos: “Destinos do corpo ao final de análise” de Cristiana Gallo de São Paulo e “O supereu é o imperativo de Gozo: Goza?” de Rodrigo Camilotti Rodrigues do Paraná, ambos produtos conclusivos de cartéis já encerrados. “Adolescência e os momentos lógicos da puberdade” de Flávia Cêra do Paraná e “Quando o desejo d-ecola” de Fernanda Turbat de São Paulo, textos que levantam questões do início do trabalho em cartel.

A riqueza que estes quatro trabalhos reunidos nos oferece é a diversidade tanto dos produtos em sua singularidade quanto do tempo em que eles podem ser confeccionados: no início, no meio e ao final de um trabalho de cartel.

Para concluir e abrir o apetite dos leitores, reproduzo o que Flávia nos diz na apresentação do seu texto : “essa forma de trabalho, esse dispositivo criado por Lacan, dá uma juventude, um frescor, traz um elemento de novidade e surpresa aos temas trabalhados que deve também estar na ordem do dia na nossa prática clínica.

Foi um ponto que me levou a constatar mais uma vez que forma e conteúdo se imbricam de um modo muito singular na psicanálise.”

Boa leitura a todos!

 

Destinos do corpo ao final da análise
Por Cristiana Gallo

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Finalizei e iniciei um novo cartel[1] com esta questão, aberta a partir daquilo que até então me perguntava sobre os destinos do amor ao final da análise.

No cartel anterior, atravessando o que foi possível elaborar de uma passagem do ‘amor transferencial’ ao ‘amor ao sinthoma’, a questão do corpo ao final se colocou numa articulação entre real e imaginário, expressa numa questão extraída de um texto de Marie-Hélène Brousse onde se destacava a “presença rebelde da imagem” ao final da análise:

(…) cristais do imaginário, indeléveis ao processo analítico, conservando uma referência ao corpo e à sua imagem, não poderiam ser considerados como o núcleo do ego? (…) Estas cenas, efetivamente, apresentam a imagem, o corpo, fora de toda perspectiva totalizante, mas, por outro lado, não sem relação com o circuito do gozo.[2]

Naquele momento me perguntava se o ‘amor ao sinthoma’, proposto por Brousse como um amor que viria dar tratamento ao real, se colocaria como a via em que se escreve o [novo] destino de um corpo ao final da análise.

Hoje, a partir dos relatos trazidos por Silvia Salman sobre a “experiência da análise como uma experiência de corpo”[3], reintroduzo e recoloco a questão marcando o que durante o processo analítico apresenta-se em termos das várias modalidades de ter um corpo, buscando extrair as possíveis consequências entre “ter um corpo” e “experimentar ter um corpo” naquilo que pareceu ser o esforço dessa transmissão do passe.

Ainda numa palavra sobre a passagem ao ‘amor ao sinthoma’, podemos destacar nessa transmissão algo da oposição e da articulação entre o inconsciente transferencial e o inconsciente real, o que poderíamos tomar como “a diferença e ao mesmo tempo a articulação entre o sujeito do significante e o parlêtre. É desta falha de identificação ente o ser e o corpo que a psicanálise encontra seu lugar para poder operar sobre os diferentes modos de ter o corpo.”[4]

Entendo que Miller nos esclarece algo dessa passagem quando trabalha O Seminário: O sinthoma e nos traz o que chama o ‘avesso de Lacan’: “No lugar do Outro, o corpo. Não o corpo do Outro, e sim o corpo próprio, como se diz. Eu diria que é preciso criar alguns nomes para nos acharmos na história que tentamos contar a propósito desses pedaços de real, trata-se de Um-Corpo.”[5] Miller esclarecerá que aí não estamos num registro de amor ao pai, mas de amor próprio, amor a Um-Corpo – “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem.”[6]

Seguindo com Miller, dizemos que é esse Um-Corpo que o falasser leva a análise em termos de consistência (consistência mental, dirá Lacan), uma vez que seu corpo, fisicamente, sai fora a todo instante. Tal consistência mental nos aponta para a articulação entre Um-Corpo e o imaginário e, indo adiante, entre imaginário e simbólico a partir do pensamento que é votado à adoração do Um-Corpo.

No último ensino de Lacan, considerando as três categorias – real, imaginário e simbólico -, a reunião de imaginário e simbólico produz sentido, semblantes, enquanto o real é sem sentido. O sentido nos coloca na via do verdadeiro, mas um verdadeiro que se embrulha: “o real se encontra nas embrulhadas do verdadeiro”, onde se articularia o corpo e seus furos!

Retornando ao passe de Sílvia Salman, interessa-me extrair o que ficou indicado num pós-testemunho como as diferentes modalidades de ter um corpo que se seguem a um primeiro tempo de um ‘corpo à deriva’, mais tarde nomeado de anorexia: “um acontecimento de corpo enlaçado ao gozo do Outro materno”[7].

Podemos destacar o corpo do desenho animado articulado ao corpo da histeria, que nos fala de um programa de gozo que vai sendo esclarecido pela análise na medida em que ‘tomam corpo’ na própria transferência.

O desenho animado teria sido a forma, a partir do pai, de subtrair-se ao gozo do Outro materno diante do qual ameaçava sucumbir, mas que por sua estrutura ‘bidimensional’ acabava por deixar algo de fora; entendo que se tratava, assim, do próprio ponto de desgarramento do falasser, expresso pelo “fugidia” presente nos relatos: ela irá esclarecer que a fuga consistia, em sua histeria, num modo singular de expressar o gozo da ausência.

Ao final, ela falará em “um corpo de mulher, lugar de um novo regime de satisfação que implica um menos do padecimento do sentido edípico e um mais de consentimento a uma erótica própria do desejo”[8].

Nesse tempo final, será apresentado um significante novo:

‘encarnada’, que entranha a carne, o vivo e o feminino em uma consistência tridimensional que o desenho animado, enquanto o bidimensional de uma imagem, mantinha aplainado. Deste modo, o corpo (e a experiência de gozo que se aloja nele) adquire um relevo na análise, que se manifesta nos modos de tê-lo e de usá-lo.[9]

Desse modo, a questão, que caminhou do ‘destino do corpo’ às ‘modalidades de tê-lo e usá-lo’, vem dar nova expressão ao que antes foi tratado como a ‘experiência de ter um corpo’, na medida em que inclui “um mais de vida”[10] e o articula a um novo semblante. Apresenta-se o que se pode obter em uma análise em termos da invenção de uma mulher, invenção de um corpo de mulher.

 

O Supereu é o Imperativo de Gozo – Goza?
Por Rodrigo Camilotti Rodrigues

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Este trabalho produto visa investigar essa frase que chama a atenção pela natureza provocadora da sua definição, que nela inclui o conceito de gozo considerando-o uma injunção feita pelo supereu ao sujeito. No caso, o título de meu trabalho, o que dá o tom a ser investigado, começa pelo ponto, de exclamação, que muda de direção para interrogar o que esse imperativo que exclama quer dizer: “O Supereu é o imperativo de gozo: Goza! (?)”. Com essa frase, Lacan apontou para a faceta paralisante do supereu no Seminário 20: Mais, ainda. Sendo assim, será o supereu em sua face de gozo que me proponho a percorrer neste trabalho.

Freud elaborou o conceito de supereu a partir da tríade parricídio, culpa e punição, desde o início da teoria até a formalização do conceito. Com o percurso de ensino de Lacan, o supereu simbólico como lei incompreendida foi se aproximando do campo do gozo. Ao indagar-se sobre o que é o gozo, Lacan responde que ele é uma instância negativa que não serve para nada e indica a reserva que implica o direito ao gozo. Lacan aponta: “e nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O Supereu é o imperativo de gozo – goza!”.

Há de se fazer uma distinção entre o supereu freudiano e o lacaniano: este se reduziria a um proibidor da satisfação pulsional, uma instância que impõe limites ao gozo, herdeiro do complexo de Édipo. Com a renúncia às pulsões, o complexo de Édipo é dessexualizado, restando dele o supereu como lei. Com a dissolução do complexo de Édipo, a criança se identificaria ao pai, que estabelece a posição de ideal do eu para a criança, e é o supereu que se apropria e exige o cumprimento desse ideal pelo sujeito. É a instância que vai interditar o acesso do sujeito ao gozo sexual, enquanto que em Lacan o supereu aparece como um ordenador de gozo: seu imperativo não é o de obedecer, mas o de gozar, e o gozo é justamente o que o supereu freudiano proíbe.

Em um primeiro momento, através dos Seminários de Lacan, ele circunscreve que, quando no discurso existe uma voz de comando, por parte do sujeito, em seguida há uma tentativa de adequação à ordem posta. Mesmo que a adequação e a exigência sejam de caráter insensato, o sujeito sente-se impelido a sua realização, considerando a ordem posta como uma incitação que parte da voz. O objeto parcial voz, a voz do Outro, como objeto pequeno a, considerada como um objeto essencial, aparece como condição da função do supereu, implantado pela a qual a criança não tem condições de interpretar. Dessa forma, pode-se propor que o “tu deves”, pensado por Lacan como modalidade do Supereu, aparece para o sujeito como vindo do Outro como uma ordem e um amor, conectados um ao outro. Esse “tu deves” chega ao sujeito como uma palavra desprovida de todos os sentidos e é justamente neste ponto enigmático que o supereu se expressa. Por esse “tu”, fora de sentido, apresentando-se como um único significante, o sujeito faz de si o seu alvo.

Lacan, ao descrever que é no ponto de declínio do complexo de Édipo que se produz a introjeção, faz uma inversão: o que era fora torna-se dentro e o que era pai torna-se supereu. Considerando a implantação do supereu na fronteira do registro simbólico, pode-se destacar a divisão do mundo simbólico do sujeito em dois: uma parte passivel de reconhecimento, acessível e de acordo com a lei; outra, discordante da lei, desconhecida, fora dela. Ao mesmo tempo que oferece acesso ao registro simbólico, o interdita e se expressa pelo imperativo, satisfazendo-se pela vertente do gozo.

Lacan diz: “o supereu se inscreve concretamente no humano, digo concretamente para assinalá-lo como inscrição no real, de uma forma cuja economia se torna mais exigente quanto mais sacrifícios lhe prestam”. Com os novos sintomas na contemporaneidade, fica evidente que o declínio do ideal se acompanha das exigências de gozo e diante de tal contexto, uma exigência para os excessos, para o ilimitado e que convoca o sujeito a um impossível de se satisfazer, mortifica quem quer que entre nesse circuito de gozo, invariavelmente culpando-o por não atingir essa exigência.

Avançando um pouco mais, Lacan fala que tudo gira em torno do “gozo fálico” – gozo que define a posição da mulher como não-toda, não toda-fálica, e que não há apreensão total da lei, o que já aponta para o que escapa ao simbólico, ou seja, para o real. Pode-se pensar que o supereu é correlato da castração, pois ele é o herdeiro do complexo de Édipo. Sendo correlato da castração, o supereu se manifesta como gozo fálico, ou seja, a castração é um signo de que o gozo do Outro só se incita pela incompletude.

Para se pensar supereu feminino, é preciso se ater ao pensamento de Lacan a respeito do gozo feminino. Este não apresenta uma diretriz, é inominável, não se escreve e difere do gozo fálico e como a mulher é não-toda fálica, ela tem uma parcela ligada à significação fálica, ao mundo dos semblantes, ao imaginário e ao simbólico. Se, por um lado, o supereu é um imperativo de gozo, e há algo da mulher que está ligado ao mundo dos semblantes, mas também algo de outra ordem, não passível de ordenamento, pode-se pensar sua presença na demanda infinita de amor feita pelas mulheres como algo do gozo superegoico feminino, o qual se encaminha em alguns casos para uma devastação que arrebata? Nesse caso, essa demanda que escapa e difere do gozo fálico, há um gozo superegoico feminino unido ao real?

 

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Referências
LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
LACAN, J. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

 

Adolescência e os momentos lógicos da puberdade
Por Flávia Cêra

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Dos encontros, leituras e debates que desdobram esta pesquisa feita em um cartel sobre a adolescência, queria destacar um ponto: a forma de trabalho, esse dispositivo criado por Lacan, dá uma juventude, um frescor, traz um elemento de novidade e surpresa aos temas trabalhados, que devem também estar na ordem do dia na nossa prática clínica. Foi um ponto que me levou a constatar mais uma vez que forma e conteúdo se imbricam de um modo muito singular na psicanálise.

Vou apresentar aqui algumas das minhas elaborações bastante incipientes. Para nos afastarmos das definições sociológicas da adolescência, que são importantes, evidentemente, mas que se mantêm no tom generalizante que as caracterizam, uma primeira hipótese aponta para a adolescência como uma travessia. A segunda é que a adolescência é um efeito de discurso sobre alguns encontros e transformações, alguns nomeados por Freud nos Três Ensaios como metamorfoses da puberdade.

Tratarei aqui a puberdade como um momento lógico. Interessa-me isolar alguns pontos de tal momento: um deles são as modificações corporais, o processo de metamorfose, uma mudança no corpo que produz efeitos no modo de gozo, e que causa estranhamento e exílio, como explica Lacadée[11]. Outro ponto é o encontro com o que Freud chama de objeto sexual, ou seja, a passagem do autoerotismo para o corpo do outro. Seguindo Daniel Roy[12], podemos dizer que esse encontro (que Freud também aventa como um reencontro) é com o furo que marca a impossibilidade de uma plenitude mítica encoberta pelo amor dos pais na infância para o encontro com o real da não-relação. Por isso, Lacan dirá que “o véu não mostra nada eis o princípio da iniciação”[13]. Ou seja, a sexualidade faz buraco no real em torno do qual o ser falante terá que montar suas hipóteses, sustentar seu desejo, construir seu corpo, uma vez que as construções da infância não contemplam as respostas exigidas por essa nova posição. O encontro com o real da não-relação, ademais, implica também o encontro com a inconsistência do Outro, com a falta do Outro, sendo, então, a adolescência um momento em que se faz esse esforço de elaboração. Desse modo, poderíamos situar a puberdade como um troumatisme [14].

Todavia, esse esforço de elaboração se situa em lugar muito específico porque na adolescência é preciso um esforço a mais por se tratar, como dizíamos, de um momento em que as construções da infância vacilam. Há então um outro momento lógico da adolescência que é a construção de um lugar de enunciação. Como explica Cristina Drummond:

“Temos então em mente que essa operação que diz respeito à enunciação e sua relação com aquele que fala e se conta é o passo lógico que diz respeito à construção feita na adolescência. Se essa operação implica no conceito, algo do que escapa ao saber vai ter de se alojar em outro campo, para além do inconsciente e do édipo. Esse passo lógico é o que podemos chamar de esforço de enunciação, esforço de dizer algo sobre o indizível, esforço de se contar como um.”[15]

Trata-se, então, de falar e não mais ser falado, de contar e não ser apenas contado, de operar aí com um vazio que comporta toda a enunciação para que se possa rearticular algo do fantasma e do falo. Isso se dá porque o adolescente deixa sua posição de criança fálica e se confronta com um fora do sentido, um gozo, instalado no próprio corpo.

Desse modo, podemos pensar que esse esforço de enunciação, que será também o esforço de elaborar algo desses encontros sempre faltosos, é o que permitirá enlaçar sintomaticamente corpo e imagem. Sabemos que, para Lacan, não somos um corpo, mas temos um corpo.[16] É preciso, então, de uma apropriação para poder habitá-lo. Isso não é simples, porque há algo do corpo que sempre resta como estranho, como fora da imagem que o unifica, o objeto a. Não se trata, então, de domesticar um corpo, mas de habitá-lo nesse lugar equívoco entre a língua e a imagem.

É disso que trata o “Prefácio a O despertar da primavera”: ele leva em conta o começo do trabalho da fantasia como preparação para o encontro com o corpo do Outro[17]. Esse trabalho da fantasia incluiria o próprio corpo como Outro, essa metamorfose, esse exílio do gozo. Vou seguir trabalhando na tentativa de estabelecer melhor as diferenças entre a puberdade e a adolescência. Um dos caminhos proposto seria o tempo lógico da puberdade como preparatório para esse encontro. Este seria o tempo do trabalho da fantasia, que exige uma outra versão do falo e a maturação do objeto a que Lacan menciona no Seminário 10[18], e a adolescência como o encontro.

É certo que esses momentos não são estanques e fixos, que esses tempos não são progressivos, mas pensar alguns momentos lógicos da adolescência se fez necessário no meu trabalho porque a adolescência não é um conceito psicanalítico. Isolar esses momentos permite que se operacionalize o conceito sem cair na tentação comparativa dos comportamentos que, à psicanálise, não diz nada e pode levar água para o moinho de soluções bastante violentas em relação à adolescência no mundo contemporâneo. Nenhum jovem, em momento algum da história, se apresentou tal e qual em relação a outro tempo, e essa diferença se aprofunda com as mudanças do mundo. A passagem do tempo, a leitura do tempo, a relação com o Outro são ditas justamente por eles que veem o mundo de um ponto de vista novo e que vão sempre imprimir algo novo nas relações. Não saber sobre o que os jovens fazem implica aprender com eles, supor saber nos arranjos das suas experiências. É preciso lembrar sempre que a direção do tratamento não é uma direção do paciente que é preciso acolher e dar tempo de compreender e construir as invenções que derivam dessa travessia.

 

 

Quando o desejo d-escola
Por Fernanda Turbat

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No texto D’écolage, de 1980, Lacan pronuncia as seguintes palavras: “Eu fiz o passo de dizê-lo, até então de maneira irreversível. Voltar atrás significaria colar-se lá onde eu fiz menos Escola… que cola. Dissolvida está, pelo fato do meu dito. Resta que ela seja também do de vocês”. [19] N.A

Praticamente 20 anos depois do Ato de Fundação[20], em que Lacan “funda sua Escola–sozinho”, o texto de dissolução guarda alguns paralelos indissolúveis em sua prática.

A exclusão da IPA, em 1964, a que Lacan nomeia de “excomunhão”, tem como consequência efeitos liberadores. Por que liberadores? Pois Lacan vai articular os dois anos precedentes de sua “excomunhão” como um tempo de negociação de sua habilitação internacional da sociedade (IPA). E para Lacan não há nada mais humano que ser negociado, a todo instante, pois é a troca que nos faz apreender a estrutura social.[21]

Essa negociação, que faz matéria de escândalo, é justamente o que permite Lacan de contestar a psicanálise da época – sobre a análise didática, por exemplo, refere-se a uma práxis deixada completamente na obscuridade – e levar alguma luz em relação a seus objetivos, seus limites, seus efeitos, questionando-se, enfim: o que funda a psicanálise como práxis?[22]

Assim, é neste contexto que Lacan funda sua Escola, o que não deixa de ser uma escolha forçada. Segundo Miller, Lacan não tinha escolha: ou fundava a Escola ou era excluído completamente da psicanálise.[23]

É isso que o “Ato de fundação” com o “Eu fundo, só” se refere. Apesar de tantos que permaneceram ao seu lado – analisantes, colegas, estudantes -, para Lacan a Escola era uma aposta, e o contexto mostra que ele não a fundava com eles, mas sozinho.

Essa posição de sozinho fica evidenciada na fundação, segundo Miller, quando Lacan mostra evidências de assumir a posição de extimo. Ele se posiciona como o mais-um de sua Escola, não se incluindo na série da Escola[24]. Posição de excluído, assim como seu seminário interrompido – conta-se como aquele que fica de fora da série, dentre outros.

Talvez aqui possamos perceber a radicalização de sua posição a partir da dita “excomunhão”: a do excluído, que sem dúvida produziu efeitos em sua prática e em seu ensino dali em diante.

Lacan convida incessantemente, ao longo de seu ensino e mais precisamente durante o tempo de existência de sua Escola, a pensar o campo inaugurado por Freud. Segundo ele, Freud não soube deixar seus seguidores de outra forma que a opção de se “sindicar”. Uma crítica aos grupos de psicanalistas – crítica mantida desde seu tempo na IPA.

Erradicar o “sindicalismo” era uma preocupação de Lacan. Ele considerava que os efeitos de um grupo de psicanalistas, na forma como este se apresenta, incluindo hierarquia e grados, era danosa à psicanálise.

De que maneira Lacan resolve isso na sua Escola?

Desde a fundação da Escola, as primeiras palavras de Lacan foram de lançar mão do dispositivo do Cartel. “Para a execução do trabalho, nós adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada em um pequeno grupo”[25]. Esse modo de execução de um trabalho antecipa uma solução em que um descolamento efetivo do grupo pudesse ter lugar. Ele propõe, em última instância, um trabalho em que os efeitos de grupo fossem menos nocivos, pois esses são efeitos dos quais ele mesmo padeceu.

Propõe, enfim, a Escola como um lugar de trabalho e de trabalhadores decididos, sendo eles guiados pela transferência. “O trabalho não está, portanto, constituído às cargas de uma chefia para acesso a uma grados superior, não implica uma hierarquia, mas uma organização circular onde o funcionamento se reforçará pela experiência”[26].

Lacan evidencia inúmeras vezes que essa experiência é resultado do trabalho, substantivo que utiliza incontáveis vezes no texto do Ato de fundação. Não se entra em uma Escola para descansar, mas para trabalhar mais e mais[27].

Mas de que trabalho trata-se aqui? Trabalhar movido pelo saber próprio de cada Um? Um trabalho movido pela “solidão” de cada um em sua relação com a causa analítica?

Se esses são os princípios de sua Escola e se Lacan a funda só, ele não encontra a mesma questão em sua dissolução, quase 20 anos mais tarde. Para ele, é o que mostra o texto D’écolage, era tempo de desfazer a cola, que fazia menos Escola que cola. Inspira os psicanalistas de sua época a irem além, servindo-se da vontade de ex-sistir, utilizando-se de uma prática única, de um laço social jamais existido até o presente[28].

Um campo, diz ele, inaugurado por Freud, mas atualizado. A Causa freudiana, tal qual é a proposta de Lacan, é a experiência da Escola em um território onde cada um teria a oportunidade de demonstrar o que faz do saber que a experiência própria e individual evidencia.

O Cartel é mantido mesmo após a dissolução da EFP (Escola Freudiana de Paris) na proposição da Escola da Causa Freudiana. Se há algo que faz cola, este dispositivo segue sendo a aposta de Lacan como algo que da Escola d-escola, ainda que no cerne da mesma.

Ser o mais-um de sua própria experiência tem a ver, então, com a possibilidade dessa ex-sistência proposta por Lacan – o extimo -, que, por sua experiência própria, pode se situar dentro e fora do dispositivo, não se fazendo colar nos demais de uma experiência. Isso se dá, obviamente, com a extimidade do mais-um, que se coloca como operador próprio desse descolamento.

 

O Saber de Um, d-escola-do do grupo

Trabalhando em Cartel, esse saber, que é próprio de cada Um, se insinuou em um ponto muito específico, que é o que gostaria de compartilhar hoje. Um Cartel sobre o Seminário 18 – entrávamos todas as cartelizantes em um acordo de que queríamos estudá-lo, definimos e convidamos o mais-um e assim ocorreram nossas primeiras reuniões, onde alinhamos a forma como iríamos trabalhar. Até aí, nada de novo!

A questão singular fica evidenciada, no entanto, no título que cada cartelizante encontra como questão a ser respondida durante o trabalho de Cartel: alguns títulos mais longos, fazendo um prolongamento da questão quase que até sua resposta; outros sucintos e objetivos; outros ainda em forma de exclamação e não pergunta. Formas variadas de se colocar a questão do desejo e dar pistas do que traz cada cartelizante àquele ponto, naquele Cartel específico.

Uma questão, seja ela em forma interrogativa ou não, implica colocar em marcha algo do desejo, esse sempre singular. Não faz, portanto, série com a série de lições estudadas encontro após encontro.

Será que a singularidade da questão inicial e a maneira que cada cartelizante tem de colocá-la estão ligadas à solidão da relação que tem cada um com a causa analítica?

Será, enfim, que estamos sós, ou não, na própria relação com a causa analítica? Como nos convida Miller a pensar a partir desse “Eu fundo sozinho…”, que ele chama de confissão biográfica de Lacan.

Sabemos com Lacan que não há sujeito coletivo da enunciação. Mas há uma diferença entre “estar só” (em sua enunciação) e “ser o único”[29]. Fazer parte, portanto, de um Cartel se inscreve dentre os tantos trabalhos registrados e que faz mover o saber da Escola. Por isso, não se está completamente só, mas se é o único de uma experiência.

Assim, participar de um Cartel traz essas duas dimensões:

– a solidão de “fundar” uma questão que tenha a ver com a sua ex-sistência, com o desejo d-escola-do de um grupo;

– o trabalho de uma questão que direcione o saber à Escola. Um trabalho dirigido, portanto, com a suposição de que algo dele possa circular, movimentar.

Uma experiência, portanto, nas suas dimensões tais quais apresentadas por Lacan em sua relação com a Escola. Se em “Ato de Fundação” trata-se de fundar sozinho, fazendo-se de extimo da própria experiência; em “dissolução”, trata-se de d-escolar o que de um refúgio faz cola.

Trata-se em ambos os casos de fazer decolar um desejo que é ao mesmo tempo íntimo e compartilhado. Afinal, Lacan não admitia que ninguém se aproximasse da Causa freudiana que não seriamente d’écolé[30] (d’escolado; mas por ressonância em francês – descolado; decolado).

Convido, assim, a pensarmos: no dispositivo do Cartel, seria o título da questão de trabalho individual o que do desejo de cada um decola

 

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[1] Cartel “O inconsciente e o corpo falante”, composto por Cristiana Gallo, Eduardo Benedicto, Emmanuel Mello, Fabíola Ramon, Maria Célia Reinaldo Kato, Paola Salinas (mais-um) e Silvia Sato.
[2] BROUSSE, M.-H. O amor ao sinthoma contra o ódio da diferença. Evento cartéis. Disponível em: <http://www.encontrocampofreudiano.org.br>.
[3] SALMAN, S. O mistério do corpo que fala. In: HOLCK, Ana Lúcia Lutterbach (Org.). O que se passa? Análises lacanianas e outras histórias. Rio de Janeiro: Subversos, 2012. p. 195
[4] SALMAN, S. O mistério do corpo que fala. In: HOLCK, 2012, p. 197.
[5] MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. Rio de Janeiro: JZE, 2009. p. 110.
[6] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: JZE, 2007. p. 64.
[7] SALMAN, S. Um corpo de mulher entrevista Silvia Salman. Disponível em: <http://leonardocr93.wix.com/jornadas2015ebpsp#!um-corpo-de-mulher-entrevista-silvia-sal/cvxo>.
[8] SALMAN, S. Um corpo de mulher entrevista Silvia Salman. Disponível em: <http://leonardocr93.wix.com/jornadas2015ebpsp#!um-corpo-de-mulher-entrevista-silvia-sal/cvxo>.
[9] Ibdem
[10] Ibdem
[11] LACADÉE, P. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2011.
[12] ROY, D. Metamorfose. 2016. Disponível em: <http://minascomlacan.com.br/blog/qqpega-03-metamorfose-daniel-roy/>.
[13] LACAN, J. Prefácio a O despertar da primavera. (1974). In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[14] LACADÉE. O despertar e o exílio, 2011.
[15] DRUMMOND, C. Adolescência: um esforço de enunciação. 2016. Disponível em: <http://www.encontrobrasileiro2016.org/#!um-esforco-de-enunciacao/ldayg>.
[16] LACAN, J. Joyce, o Sinthoma. (1975). In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[17] Lacan, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. Idem.
[18] LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 282. Lacadée aponta que Lacan pensa “a função de um laço a ser estabelecido a partir da maturação do objeto a”.
[19] Lacan, J. D’écolage. 1980. Disponível em: <http://www.apjl.org/non-classe/decolage-jacques-lacan-1980/>.
N.A Tradução livre.
[20] LACAN, J. Acte de fondation. Autres Écrits
[21] LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux, p. 13.
[22] LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux, p. 15.
[23] MILLER, J.-A. L’ecole et son psychanalyste. Disponível em: <http://www.causefreudienne.net/lecole-et-son-psychanalyste-2/>. Acesso em: 11 maio 2016.
[24] MILLER, J.-A. L’ecole et son psychanalyste. Disponível em: <http://www.causefreudienne.net/lecole-et-son-psychanalyste-2/>. Acesso em: 11 maio 2016.
[25] LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux, 1964.
[26] LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux, 1964, p. 230.
[27] MILLER, J.-A. L’ecole et son psychanalyste. Disponível em: <http://www.causefreudienne.net/lecole-et-son-psychanalyste-2/>. Acesso em: 11 maio 2016.
[28] MILLER. L’ecole et son psychanalyste
[29] Cf. LACAN, J. Discours à l’École freudienne de Paris. (1970). In: ___. Autres écrits. cidade, editora: ano. p.
263.
[30] Ibid

 

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