[Conversações/ Intercâmbio com a cidade – Nº1] Luiz Eduardo Soares

Para enriquecer ainda mais nossas discussões sobre o tema da redução da maioridade penal e visando à ação dobradiça entre psicanálise e cidade, Marícia Ciscato nos conectou à opinião do
antropólogo, cientista político e escritor Luiz Eduardo Soares para dar sua opinião sobre o tema. A resposta veio prontamente:
“Que sentido haveria em defender a ampliação das responsabilidades de um sistema falido? Que sentido haveria em propor a extensão do espectro de abrangência de um modelo que sabidamente não funciona, pelo contrário, produz o inverso do que lhe cumpriria? Não soa absurdo a qualquer pessoa sensata, independentemente de sua ideologia e de seus valores éticos, que uma instituição consensualmente reconhecida como degradada, perversa, irracional, violenta e contraprodutiva, seja encarregada de assumir mais atribuições, ainda mais exigentes e complexas?
Pois é isso o que está acontecendo no Brasil, quando se propõe a redução da idade de imputabilidade penal. É exatamente esse contrassenso. Afinal, reduzir a idade significa nem mais nem menos do que ampliar o âmbito de atuação e responsabilidade do sistema penitenciário, essa máquina monstruosa, cada vez mais refratária à LEP, cada ano mais torpe e brutal, que custa caríssimo para piorar as pessoas e a sociedade. Ou alguém discorda que o sistema penitenciário esteja falido, seja fonte de reincidência, escola do crime e agência de destruição em massa de corpos e espíritos? Não importa nenhuma querela sobre psicologia de adolescente, nenhum debate filosófico sobre ética, nenhuma ponderação jurídica, nenhuma análise sobre criminalidade praticada por jovens de idades precoces. Cessa tudo o que a antiga musa canta. Só interessa o óbvio ululante.
Vamos propor que o que não funciona para os adultos seja aplicado aos adolescentes? Vamos sustentar que aquilo que destrói adultos passe a destruir também adolescentes? Por quê? Como isso pode passar pela cabeça sadia de uma pessoa que se supõe racional?

Obra da Sélection du Week End n. 17.

E o movimento alucinatório não para aí. Alguém acha que faz sentido mudar uma lei em razão de seus maus resultados sem que ela jamais tenha sido aplicada? Pois é isso o que ocorre quando se deseja modificar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Saibam todos e todas que ainda não sabem: o ECA nunca foi seriamente, rigorosamente aplicado no Brasil. Como lhe atribuir resultados? Não parece mais sensato testar a lei antes de defender sua substituição? Sanciona-se uma lei, não se a aplica, anos depois se a critica por ineficiente e propõe-se outra. Tem cabimento? Proponho o contrário: façamos uma cruzada pela aplicação do ECA e voltemos a discuti-la quando houver resultados para avaliar.
Se dependesse de mim, proporia a ampliação da abrangência do ECA para que se teste sua aplicação também aos adultos, com as adaptações pertinentes.”
Luiz Eduardo Soares – antropólogo, cientista político e escritor. Autor dos livros Elite da Tropa, Elite da Tropa 2 e Cabeça de porco, dentre outros.

 

 

Imagem (pé esmagando pessoas): Instalação, Artsonje Center, Seoul, Do Ho Suh
  

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