[Ação Lacaniana Entre-vista – Nº9] Texto de Philippe Lacadée sobre a exposição de JR no Morro da Providência no Rio de Janeiro

ADN9

Nos anos de 2008-2009, o artista JR dedicou-se a um projeto realizado ao longo de uma extensa jornada que inclui a África, a Índia, o Camboja e o Brasil. Aqui, JR escolheu a comunidade Morro da Providência, no Rio de Janeiro, para sediar a intervenção nomeada Women are Heroes. Ao vermos seu produto, concordamos com as observações do próprio artista: seu trabalho caracteriza-se por ter “muitas imagens e poucas palavras”. JR ainda situa que sua intenção era conferir o devido valor e dignidade às mulheres que ocupam um papel essencial nas sociedades, mas são as principais vítimas das guerras, dos crimes, de violências ou fanatismos políticos e religiosos. Para obter tal efeito, foram estampados nas construções do Morro da Providência rostos femininos, destacando-se a expressão dos olhos e os olhares. Esses olhares arrebataram outros olhares, tal como testemunha o vídeo documental do trabalho (http://www.jr-art.net/fr/projets/women-are-heroes-bresil), realizado pelo próprio JR. Dentre os vários olhares capturados, está o do psicanalista francês Philippe Lacadée que, ao comentar esse vídeo, transmitiu no breve texto “Caramba, os olhos do morro estão abertos!!!” o impacto da arte de JR no espaço “vivo” do Morro da Providência, que é a primeira favela do Rio de Janeiro.

“Caramba, os olhos do morro estão abertos!!!

Philippe Lacadée

 

Os olhares sustentados nos rostos das mulheres nos tomam em um laço fixo e de movimento. O paradoxo da vida, a morte, oferta sua única saída válida para todos, aqui apresentada pelos olhares dispersos aqui e acolá como um puro grito sem Outro. Esse grito silencioso das mulheres lúcidas, que sabem o que têm a fazer, é sustentado passo a passo oferecendo um caminho de olhares que nos guiam na bricolagem da vida nesse lugar do pior que pode ser uma favela. Não são passos perdidos, mas sobretudo passos da vida, ali onde justamente a vida pode passar muito rapidamente à morte. Se elas dizem que suas raízes estão aí alojadas, elas sublinham, sobretudo, amar este lugar. Ao menos Uma, de maneira forte, diz amar tudo aqui, sobretudo a paixão que se vive neste lugar no instante presente. E é, exatamente, neste instante da apreensão do olhar que nos fixa como espectadores desse momento. Então, são estes olhares e faces femininas que nos apresentam a favela. O movimento do filme é ritmado também pela alegria de viver que se sente nos corpos das crianças, mas também pelo sopro vivo das nuvens que, apesar da presença do Corcovado, estão lá para nos dizer que se o céu se vela é para nos indicar que ele está vazio. De repente, ao amanhecer do dia e da vida na favela, uma mulher escreve os olhos do morro estão abertos. Ainda assim, de maneira acolhedora, se abrem as portas fechadas das casas, dando-nos a ver que a vida cotidiana também é ritmada, como em outro lugar, pela satisfação dos circuitos pulsionais em torno dos objetos que sustentam nossos corpos vivos, sem esquecer a necessária televisão e também a gaiola com passarinho.

Este homenzinho mamando no seio de sua mãe, sentada em companhia de outras mulheres de idades diferentes, no alto da favela, nos oferece a moldura do objeto olhar. É aí que se enlaça a primeira troca de olhar entre a criança e a mulher que lhe oferece a vida, que frequentemente, não obstante, é aquela que busca encontrar no olhar de seu filho a segurança, para além de um real indizível, de que é a criança quem faz dela uma mãe. Esses olhares de crianças que correm ou brincam, ou mesmo, sorrindo para nós, não são olhares vazios colocados sobre as escadas ou os muros. Não, esses são olhares que contêm, no corpo, a dimensão do Apelo ao Outro. Resta saber qual Outro estará à altura de seus chamados, ali onde, frequentemente, os pais ou os adultos estão ausentes, ocupados com seus afazeres para tentar sobreviver. Para muitos, a dívida simbólica por onde eles teriam seu lugar, lhes foi arrebatada. Eles não sabem mais achar o ponto de apoio, o ponto de onde ser olhado pelo outro a fim de ter deles uma imagem como criança amável, digna de ser amada. Então, eles correm, colocam-se em movimento, em “Ação Favela” para encontrar o lugar onde eles se sentirão respeitados. Muito frequentemente eles são tirados do pior, desse seu destino que é ser mais nada. Agradecemos aqui a delicadeza e o tato de JR por nos ter permitido não sermos voyeurs desses lugares do pior, onde a ausência de destino pode conduzir o nada a se transformar em objeto dejeto; mas, ao contrário, ter elevado esse lugar, graças a seus olhares e rostos femininos, à dignidade de um testemunho pulsante de um real indizível que talvez somente um olhar lúcido pode bordear, como o sopro de uma nuvem de vida em movimento que perfura a tela.

Tradução: Isabela Silveira e Miguel Antunes
Revisão: Letícia Mello”

_____
Imagem: Fhero PDF Crew