À Risca do Real

Por Melissa Bottrel
Cartel: Alguma coisa da ordem da poesia – Maria de Fátima Pinheiro (mais-Um), , Gisele Moreira, Mariana Pucci, Melissa Botrel, Olívia Viana.

  

há mundos submersos,

 que só o silêncio

da poesia penetra

 Conceição Evaristo

 

Começamos nosso cartel que mais tarde foi nomeado Alguma Coisa da Ordem da Poesia a partir do que Lacan diz no Seminário 24: “Que vocês sejam inspirados eventualmente por alguma coisa da ordem da poesia para intervir, é exatamente na direção do que vocês devem se voltar.” (LACAN, 1976-77, inédito, aula de 18 de abril de 1977).

Também no mesmo seminário Lacan afirma:

Se vocês são analistas, verão que é o forçamento por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que o sentido. O sentido é o que ressoa com a ajuda do significante, mas o que ressoa, isso não vai longe, é mais frouxo. O sentido, este obstrui. No entanto, com a ajuda do que se chama escritura poética, vocês podem ter a dimensão do que poderia ser a interpretação analítica. (LACAN, 1977, n.p,) Continue lendo “À Risca do Real”

Bridge – jogando com o morto

Por José Ronaldo de Paulo
Cartel: Savoir y faire – Eliana Bentes (Mais-um), Maya Rodrigues, José Ronaldo, Lígia Amorim, Guilherme Lima, Ana Carolina

A partir da leitura do texto “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”(1958/1998) os cartelizantes do cartel Sarvoir y Faire, foram provocados pela + 1 Eliana Bentes a realizarem uma vasta pesquisa contínua pelas referências colocadas por Lacan. Me detenho aqui a realizar uma ponte entre o jogo bridge e a análise.

No texto O início do tratamento (1913) Freud, traz à tona a metáfora do jogo de xadrez para ilustrar os impasses no tratamento analítico que vincula a tentativa de descrever e apreender algo como incerto encontrado no cenário de uma análise e no jogo – já que em ambos o decorrer do processo são diversos quanto imprevisíveis. Freud nos diz que apenas é possível representar as jogadas iniciais e finais no xadrez , colocando o meio como incerto e as limitações da representação do jogo poderíamos encontrar as regras que podem estabelecer para o exercício do tratamento psicanalítico (p.87).  Lacan, em seu retorno à Freud, utiliza o jogo de cartas chamado bridge que não à toa, é conhecido como o xadrez das cartas. Jogo este, onde o diálogo entre os parceiros é fundamental para a vitória.

O bridge é um jogo de lógica onde duas duplas se enfrentam, possuindo 52 cartas disponíveis para 4 jogadores, onde cada um fica com 13 cartas se dividindo em:

  1.  Declarante – o jogador do par que menciona o naipe de trunfo ou sem trunfo, do contrato final;
  2. Morto – o parceiro do declarante, competidor que não irá jogar durante a rodada.
  3. Flanco – a equipe adversária.

As etapas do jogo são conhecidas como Leilão e Carteio: Continue lendo “Bridge – jogando com o morto”

A INTERPRETAÇÃO NO CASO DO HOMEM DOS MIOLOS FRESCOS

Por LÍGIA CRISTINA AMORIM (BA)
Cartel: Savoir y faire – Eliana Bentes (Mais-um), Maya Rodrigues, José Ronaldo, Lígia Amorim, Guilherme Lima, Ana Carolina

Ernest Kris foi um historiador da arte que a partir do casamento com a filha de um grande amigo de Freud, iniciou seus estudos sobre a psicanálise em Viena. Posteriormente, dedicou-se a compreensão da relação entre psicanálise e criação artística.

Assim como Freud, seu mestre da psicanálise, Ernest Kris fugiu para Londres, onde se refugiou da perseguição nazista. Nesta nova morada, já com seu trabalho como psicanalista consolidado, atendeu diversos artistas. Após alguns anos, partiu para os EUA, onde passou a ministrar aulas sobre Arte e Psicanálise, chegando a publicar um livro.

A partir de questionamentos sobre a obra de Freud, Ernest Kris inaugurou e foi um dos destaques da psicologia do Ego. Utilizava um método de investigação baseado em conceitos trazidos da teoria freudiana para explicar as condições psíquicas que favoreciam o processo criativo.

Distintamente da psicanálise inaugurada por Freud – que privilegiava o inconsciente e a pulsão – a psicologia do ego centrava-se no papel do eu e na importância do ego no controle do id. Esta psicologia, ainda defendia que a análise deveria iniciar pela superfície, priorizando a resistência antes da interpretação. Segundo Ernest Kris, o ego seria o mediador entre os processos primários e secundários. Continue lendo “A INTERPRETAÇÃO NO CASO DO HOMEM DOS MIOLOS FRESCOS”

RELAÇÕES AFETIVAS E O FANTASMA DA DOR

Por Denise Henriques da Silva Abreu
Cartel: O Amor na Psicanálise – Cristina Duba (Mais-um), Ana Maria Ferreira da Silva, Denise Ávila, Denise Henriques da Silva Abreu.

Ao longo do percurso desse Cartel pude apreender várias versões do amor. E isso me incentivou a trazer para essa Jornada uma versão de um romance intrigante em um filme de ficção, fora do circuito das utópicas histórias de amor, em que me fez questionar se seria sobre uma forma de amor baseada na dor de amar ou na de amar a dor.

O filme “Trama Fantasma”, de Paul Thomas Anderson (2017), é passado na década de 50, onde a face do horror ainda estava visível por conta do fantasma da dor, da Segunda Guerra Mundial, que rondava a Europa. Encenado entorno da alta sociedade londrina que vivia de aparências com seu luxo, entre elas, a beleza dos ricos vestidos em composições precisas, impecáveis, conduziu interpretar que aqui existe uma preocupação do belo como encobridor de uma dor social.

Através da história de um romance entre um estilista de meia idade famoso, bem-sucedido, exigente, dominador, e uma mulher bela, pobre, com aparência frágil é apresentada as nuances de falsas sutilezas, a ambivalência entre a perfeição e a violência, e o amor como véu de um fantasma, de um impulso arrasador, da pulsão de morte, o que pode causar estranheza para alguns espectadores por ser difícil de aceitar que se trata de uma história de amor. Desse modo, o filme abala por manifestar um traço perverso do amor em uma envolvente e apaixonante relação. Continue lendo “RELAÇÕES AFETIVAS E O FANTASMA DA DOR”

Entre princípios: Função1

Por Miguel Lacerda Neto
Cartel: “Desejo do Analista” – Maria Inês Lamy (mais-um), Guilherme Scheidemantel, Larissa Martha, Maria Luiza Rovaris Cidade, Miguel de Sousa Lacerda Neto

Ando emaranhado a questões da clínica e do hoje. Não me atrevo decantar nenhuma verdade universal ou elaboração com semblância de conclusão. Minhas andanças e os terrenos do cartel não me levaram ao solo infértil das certezas. Assim, não foi possível a tal ponto trazer quaisquer ideias fixas, pois como dizia Machado de Assis “Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo[2]”. No entanto, estou aqui para algo enunciar. Dizer, seria a melhor colocação. Digo de uma redução, não confundam com uma síntese! Exponho, desse modo, algo como o que a filosofia de Souriau[3] buscava ao encontrar as singularidades do existir em Les Difféerents modes d’existence. Assim, essa redução seria a medida que revela o ponto de vista de um modo de existir.

O que busco reduzir é mais do que as leituras e conversas que tivemos nos últimos anos como cartelizantes, mas, sim, o trabalho que se dá ao encontrarmos aquilo que nos desencontra ao pesquisar. Digo de um pesquisar-se. A perturbação que desloca um cartelizante para, mais do que elaborar e responder uma questão, compreender o próprio questionamento. Assim chego ao que foi o meu trabalho no cartel e a inquietante questão do que é isso que podemos chamar de Função de Analista. Sim, pois, se por um lado o cartel foi além de suas operações enquanto dispositivo fundamental à psicanálise – foi meu primeiro contato com a Escola Brasileira de Psicanálise. Por outro, o cartel foi solo por onde pude autorizar-me a indagar a que psicanálise hoje me conecto. Continue lendo “Entre princípios: Função1

Cartel Psicose Ordinária – atravessamentos e dissolução

Por Doris Rangel Diogo – Membro da EBP/AMP

Compartilho uma experiência no cartel Psicose Ordinária, inscrito em 2019 na rubrica “Clínica: teorias e práticas”. A contingência da pandemia favoreceu encontros dos participantes, impulsionando o cartel, embora a modalidade de reunião virtual já tivesse sido experimentada.
Cada cartelizante vinha desenvolvendo sua pesquisa e os encontros eram frequentemente atravessados por casos clínicos dos participantes ou publicados, e também por textos em torno do tema. No início de 2021, uma cartelizante que estava trabalhando acontecimento de corpo na psicose ordinária interveio com um recorte clínico que despertou vivo interesse nas demais participantes. Naquele momento, o cartel estava se dedicando ao tema do corpo no ensino de Lacan, a partir do incorporal, em Radiofonia. O caso se impôs com uma questão do analisando, que fez com que a pesquisa se voltasse para os limites do binarismo sexual orientado pelo falo como significante da diferença sexual, a favor da pluralização dos modos de gozo. Interrogando o trans, o cartel se transformou e a mesma cartelizante apresentou o trabalho na Jornada de Cartéis, em março, para o qual contribuiu o entusiasmo, não sem o sinthoma, de cada cartelizante. Os efeitos da Jornada, a contingência de um debate sobre o fenômeno trans no XXIII Encontro Brasileiro, bem como a transmissão nas escolas da AMP em torno da assunção da designação//nomeação trans, contribuíram para uma elaboração provocada que levou à reconfiguração do cartel em torno desse tema que, a cada dia, vem ganhando mais fôlego, tanto em sua dimensão clínica quanto epistêmica e política.
Na função de mais um, interroguei o rumo do cartel cujos temas se deslocaram para os modos de gozo, binarismo e pluralismo, feminização da cultura. Em encontro recente, concluímos que o cartel sofreu um reviramento e que, assim sendo, na função de mais-um, propus sua dissolução, não sem o convite para que cada uma decantasse um produto sobre Psicose ordinária para a próxima Jornada. No momento de selar a dissolução, que implica em perdas, houve um movimento entre nós para dar continuidade ao cartel com outro nome, já que o desejo de trabalhar permanecia vivo entre nós. Diante da demanda, advoguei pela dissolução do cartel e, como ato contínuo, pela destituição do mais-um, o que não impediu que outro cartel viesse, imediatamente, a se anunciar com os mesmos participantes sendo que, para a função do mais um, outro cartelizante foi convidado. Aliás, esta passagem também foi alvo de interrogação sobre os critérios de escolha do mais-um, pois, neste cartel, dos 5 participantes, apenas 2 são membros da EBP.
Apreciando o ocorrido, destaco que o cartel Psicose Ordinária realizou uma trajetória, possibilitando uma elaboração provocada e a transmissão da psicanálise, e que sua dissolução incidiu como um ponto de basta.

PSICOSE ORDINÁRIA
• Rubrica: Clínica: teorias e práticas

o Doris Rangel Diogo (Mais-Um) – Membro EBP/AMP – Psicose ordinaria – uma hipótese a partir da transferência
o Mirta Fernandes – Cartelizante – Incidências do acontecimento de corpo na clínica psicanalitica
o Vera Davet Pazos – Cartelizante – Como operar na transferência na psicose ordinária – o lugar da escuta na neotransferência
o Vanda Almeida – Membro EBP/AMP – Das externalidades ao gozo do Um e o operar do analista
o Romana Costa – Cartelizante – Psicose ordinária e amor louco

Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2021.

Cartel Psicose Ordinária – um revirão.

Por Mirta Fernandes

Um caso clínico em torno da questão de gênero, uma interrogação sobre a hipótese diagnóstica de uma possível psicose ordinária e uma convocação provocada pelo burburinho das questões de gênero, que vem se fazendo presente no âmbito de nossa contemporaneidade, trazem muitos pontos de discussão para o cartel. Provoca no cartel um certo rebuliço ao interrogar e mobilizar todos os participantes em torno dessa questão. De certa forma, esse mergulho desviava cada um de sua formulação inicial de pesquisa e do texto base do cartel, introduzindo novas e até então inéditas pesquisas e leituras, num trabalho conjunto, instigante, fazendo arder a chama do desejo num trabalho de cada uma para todas. “O que desse caso, ou da questão colocada fez essa engrenagem se movimentar intensamente e estar aí pulsando de uma forma que nunca havia vivido numa experiência de cartel?” – uma pergunta que me faço. “Aconteceu uma surpresa para todas” – fala de uma cartelizante. O cartel se TRANSforma, ganha nova vida. A apresentação do caso na última Jornada de Cartéis coroa esse revirão, abrindo outro caminho de pesquisa para um novo cartel.

Rio, 29 de agosto de 2021
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