Lucia Tower, transferência e desejo do analista

Por Maria Corrêa de Oliveira

A partir do caso de Lucia Tower, o cartel esboçou uma pergunta:

Quem é o caso?

O relato e o endereçamento das questões relativas ao processo analítico da paciente de Lucia Tower ou o próprio relato de seus impasses e entraves?

Recorremos ao belo texto da segunda lição do livro “Perspectivas dos Escritos” para nos determos no que Miller destaca sobre a fineza capturada na aprendizagem com o inconsciente. Uma fineza que também recobre a atenção aos detalhes, às sutilezas que comparecem, por exemplo, naquilo que poderia ser considerado uma singela escorregadela. 

Miller chama a atenção para a importância do analista se manter em contínua aprendizagem com a presença de seu inconsciente uma vez que “com esse nunca se está em dia”1. Uma posição advertida, que requer a humildade de um eterno aprendiz.

Freud é o mestre que nos ensina a nos determos a aprender com as sutilezas de um ato falho. Seguir aprendendo com seus lapsos mas, sobretudo, poder testemunhar sobre suas consequências e efeitos. Não seria essa uma das posições valiosas que se espera de um analista?

Com essa orientação é importante destacar o material que Lucia Tower disponibiliza ao se deter em seus tropeços.  Não se furta em dar seu testemunho, ilumina seus equívocos e os submete ao investigá-los. 

Partimos dessas ofertas, dos impasses de Lucia Tower, com um pequeno recorte que pudemos extrair sobre o desejo do analista.

Retomarei muito rapidamente a noção de contratransferência somente para ser uma via de passagem com a transferência e com o desejo do analista.

A crítica de Lacan ao conceito de contratransferência, denominada no Seminário 10 como “autocrítica interna”2, diz respeito à valorização excessiva no eixo transferencial do registro imaginário. Referendada no eu, a análise das resistências estava se apresentando como um parâmetro da técnica analítica, um cenário que serve como empuxo para que Lacan proponha a resistência como sendo do analista, e não do analisante.

O passo importante nesse cenário onde se dá a reviravolta lacaniana é a atenção dada por Lacan ao par transferência-contratransferência, no que essa duplicidade abarca: interesses narcísicos, identificação imaginária, relações pautadas no amor e no ódio.

Elementos que por si só já se apresentam como obstáculos ao processo analítico.

Serge Cottet, em seu brilhante livro “Freud e o desejo do psicanalista”3, dá a justa medida do quanto a concepção da contratransferência pode induzir ao que ele chama de “desvios” no sentido de uma identificação do analista com seu analisante. Uma identificação que pode, sobretudo, escamotear a responsabilidade do analista no que importa efetivamente ao processo analítico.

Fazendo referência à contratransferência como “a soma dos preconceitos, das paixões, dos embaraços e desconhecimentos do analista”4, Lacan sublinha que o que deve ser valorizado como função do analista em resposta ao amor transferencial da parte do analisando é o seu desejo. Desejo de que uma análise se oriente não somente com o firme propósito de seguir em seu curso, mas que siga, sobretudo, mediante o desejo que se orienta pelo que causa, tirando proveito do sintoma, das repetições e atualizações que comparecem no fenômeno da transferência. Desejo do analista que acompanha as entrelinhas dos significantes, rastros e pistas para o encontro com algo muito singular que comparece sempre de esgueira, algo como “encontrar a senha do sintoma”5.

No texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, de 1958, Lacan afirma o que já havia abordado no Seminário I: “não há outra resistência à análise senão a do próprio analista”6. Ao indicar que só há uma resistência em questão, Lacan também parece sustentar que o fenômeno a ser privilegiado no manejo clínico é só um, a transferência.

Só há uma transferência. 

Nas palavras de S. Cottet “não há mais que uma resistência, pois não há senão uma única transferência”7

Destaco dois aspectos do manejo de Lucia Tower que nos chamaram a atenção.

O primeiro diz respeito à preocupação de Lucia Tower às voltas com “sustentar uma atitude terapêutica desejável”.

Feroz crítico da relação dual pautada no ego, Lacan nos adverte para a primazia da direção clínica pautada na transferência como um indicador dos momentos de errância e orientação. Algo que Lacan define como um “não agir positivo”, reverso de uma prática que se orienta por uma pedagogia corretiva.  

Diz Lacan que “o analista que quer o bem do sujeito repete o discurso que o deformou, uma aberrante educação que quis o bem do sujeito”9.

O segundo ponto encontra-se no quanto pudemos aprender com Lucia Tower. 

Com “sua coragem”, como nos diz Lacan, sobretudo no modo com que ela aproveita, no a posteriori, seu acting out presente no esquecimento da sessão de sua paciente, por quem se sentia “abusada”.

Importante destacar que o debruçar-se sobre os incômodos e afetos suscitados pela paciente foi possível somente quando Lucia Tower se volta para examinar o que se passava com seus afetos. Uma articulação que se dá entre a ignorância de Lucia Tower sobre seus sentimentos e seu acting out.

 Ao consentir com sua atuação (“desculpe, eu esqueci”), a analista reconhece, com palavras, seu desconhecimento perante o que a impactava e atrapalhava e se insere na transferência em jogo através da implicação de seu desejo. 

Um ato que permite separação e, concomitantemente, a presença da analista.  

Lacan é incansável em sustentar que ao analista cabe estar no processo com os custos de sua palavra mas, sobretudo, com a sustentação de um lugar vazio, ancorado sobre o   significante analista como função, como condição de suporte da transferência, ao qual sua pessoa fornece somente consistência.

Um analista deve sempre se situar para se apresentar a partir da posição que ocupa na transferência. 

O ato analítico, de largo alcance, resgata a dignidade do analista ao marcar a oportunidade de trazer à cena o que parece se apresentar como mero dejeto. 

Uma função que encontra seu coração nesse movimento de resgate, nesse relançamento para dentro da cena do que seria pura perda.

Aos efeitos imaginários da relação dual, uma relação que supõe reciprocidade, simetria e complementaridade, o ensino de Lacan se contrapõe apresentando a relevância da ultrapassagem desses efeitos, com uma orientação que inclui a função do simbólico mas, sobretudo, se orienta pelo que há de impossível na relação sexual. 

Notas

  1. Miller, J.A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2011, p.28
  2. LACAN ,J. O Seminário, livro  10, A  Angústia (1962 – 1963) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005, p. 218
  3. COTTET, S. Freud e o Desejo do Psicanalista, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1989.
  4. LACAN, J. Intervenção sobre a Transferência. In __Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998, p.234
  5. COTTET, S. Freud e o Desejo do Psicanalista, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p. 131
  6. LACAN, J. A direção do tratamento, In ___Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. p.601.
  7. COTTET, S. Freud e o Desejo do Psicanalista, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edp. 47
  8. LACAN, J. A direção do tratamento, In ___Escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.p.625

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