21 de novembro 2013 - Hotel Panamericano - Buenos Aires - Calle Carlos Pellegrini 551
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Boletim haun #008
Editorial
Cleide Pereira Monteiro
Dando continuidade ao debate preparatório ao Seminário Internacional da EBP, haun, a ser realizado no dia 21 de novembro de 2013 em Buenos Aires, este Boletim contempla as contribuições das colegas Fátima Sarmento e Margarida Assad. São dois textos que trazem valiosas reflexões para se afinar cada vez mais a tese de Lacan de que “há o um”.
No texto “A necessidade apaga a contingência”, Fátima Sarmento retoma algumas lições do Seminário 19 e uma passagem do texto de Lacan “A Terceira”, para demonstrar sua tese de que a necessidade de discurso, aquela que aponta ao impossível, mesmo que autorizada por uma contingência quer, no entanto, apagar o que é da dimensão da contingência. O corpo ascende ao gozar de si mesmo pela incidência do significante Um que imprime aí uma desregulação, uma perturbação cuja ausência de sentido permite instituir uma necessidade que surge do próprio discurso. Nessa direção, Fátima é enfática ao defender a ideia de que a vida revela ser apenas uma necessidade de discurso, sem esquecer que Lacan em “A Terceira”, ao alinhar a vida do lado do real, nos provoca ao apresentar uma questão que só pode ser posta para aquele que fala: “vida implica gozo?”. Com suas provocações sobre a vida, o gozo e a morte, o texto de Fátima, seguindo Lacan, nos ensina que falar serve para defender-se da morte; dormir serve para suspender o gozo considerado como relação perturbada do corpo com ele mesmo. Pelo sono, o sujeito se defende do gozo corporal. O discurso analítico, em outra direção, caminha na desmontagem dessa defesa. Como vem nos dizer Fátima, “o desejo do analista é o desejo de despertar”.
Margarida Assad, por sua vez, com o texto “Do sentido de uma prática”, interroga sobre o sentido da prática psicanalítica a partir do que significa afirmar que “Há-um”. Quais são as consequências desse dizer, “Há-um”, para o desejo do analista? O “Há-um”, como aquilo que resulta da não-relação sexual, “é uma afirmação, uma positivação de gozo” que faz com que Lacan invente suas fórmulas da sexuação, retirando, assim, do campo simbólico, o lugar da existência e fazendo dela uma decorrência do real. Sua hipótese é a de que “esse ‘Há-um’ é para Lacan a verdade do saber com que o analista lida em sua prática”. Assim, essa verdade é imposta pelo significante Um sem par, que, como signo, marca, no corpo, o gozo que se repete. Para que o “Há-um” possa tornar-se uma práxis para o discurso analítico, ela propõe recuperar a redefinição que Lacan dá cada vez mais ao falo no final do seu ensino.
As questões postas pela autora, ao longo do texto, nos instigam a querer pensar não só sobre o que é a prática de um analisante, mas também a interrogar sobre o saber que porta um analista na sua parceria com o real a partir de sua experiência analítica, como vêm nos auxiliar os testemunhos de passe.
Convidamos, ainda, a se debruçarem nas indicações dadas por Myrta Zbrun e sua equipe, no BIBLIÔ REFERÊNCIAS que, neste número, contempla o capítulo XI do Seminário 19.
A necessidade apaga a contingência
Fátima Sarmento
“(...) O ser falante é essa relação perturbada com o próprio corpo que se chama gozo”.
(Lacan, 2012/1971-1972, p. 41)
Essa citação da lição de 12/01/72 do seminário XIX coincide com um momento em que Lacan está interessado pelos avanços da biologia que mais tarde darão origem ao que ele próprio considerou como biologia Lacaniana. Ele se volta para as questões ligadas à vida, ao corpo e à morte. O gozo entra no campo do humano pela via corporal, e isso faz com que o corpo passe a ser o lugar de inscrição de gozo. O significante Um quando se imprime no corpo introduz uma desregulação, uma vez que ele rompe com a homeostase. Esse corpo parasitado pelos significantes de alíngua apresenta-se perturbado porque o gozo no campo do real não remete a nada, é da ordem do sem sentido. A ausência de sentido vai permitir a entrada no discurso, instituindo a necessidade.
Na lição seguinte de 19/01/1972 Lacan comenta que “a arte de produzir uma necessidade de discurso” é algo diferente da necessidade em si. A própria vida, aqui, revela ser apenas uma necessidade de discurso. Lacan é enfático ao afirmar que aqueles que falam, o fazem por necessidade, e ele se sente aí incluído. Aqueles que falam se defendem da morte, mas Lacan enfatiza que nem por isso se deve crer que o gozo sexual seja a vida. A necessidade que aponta ao impossível foi autorizada por uma contingência, porém, o que ela quer o tempo todo, é apagar a contingência.
Mais adiante, na aula de 14/06/1972, Lacan esclarece o que vem a ser o desejo de dormir. “ Dormir consiste em suspender o que está ali na minha tétrade, o semblante, a verdade, o gozo e o mais-de-gozar ”. Lacan evidencia que é para isso que serve o sono. Comenta que se observarmos um animal dormindo é disso que se trata – suspender a ambiguidade que há na relação do corpo com ele mesmo, é o gozar. Declara, ainda, que, se há uma possibilidade de o corpo ter acesso ao gozar de si mesmo, tal fato ocorre quando ele bate em alguma coisa, quando se machuca. O gozo é isso. O sujeito dorme para descansar do gozo, para apagar o gozo corporal. Quando se dorme, a questão é justamente fazer com que o corpo se enrole, forme uma bola. Se o gozo é perturbador, dormir é não ser perturbado. Naturalmente, o homem é perturbado, mas, enquanto dorme, pode esperar não ser perturbado. Fica evidente, aqui, que a necessidade foi autorizada por uma contingência, porém é justamente isso que ela tenta apagar. A psicanálise, como sabemos, vai na contramão dessa defesa. No seminário 24, Lacan assinala que analisar é desatar, é perturbar a defesa. O desejo do analista é o desejo de despertar.
No seu último ensino, Lacan deixa de ser estruturalista para ser criacionista. Ele pluraliza o Nome-do-Pai, redefine a significação fálica, institui um novo Outro, o Outro como corpo vivo e ainda repensa o conceito de vida.
No texto “A Terceira”, ele coloca a vida do lado do real uma vez que não se pode mais totalmente significá-la. Ele faz uma representação (conforme figura abaixo), onde escreve, no círculo do real, a palavra “vida”, questionando: e justo aí por quê? Ele admite que o saber sobre a vida não é nada mais do que aquilo que a ciência nos induz a imaginar. E responde a sua questão assinalando que não há nada de mais real, de mais impossível do que se imaginar como dar partida à construção química da molécula do DNA, (ou mapa genômico, nos dias atuais), com seus elementos em forma de hélice, repartidos conforme as leis da ciência. Enfatiza que é bem aí que se pode observar a imagem de um nó. O que é admirável, diz ele, é que não se tenha encontrado nenhuma imagem do nó natural na anatomia, em especial, nem nas plantas trepadeiras, tão apropriadas para se perceber nelas um nó natural.
Lacan lança ainda a questão: Vida implica gozo? Considera que se a resposta permanece duvidosa para o vegetal isso só faz valorizar mais o fato de que não o seja para a fala. Podemos supor que a ostra goza, mas não sabemos se isso ocorre porque ela não fala. Só na medida em que o sujeito fala é que se pode ter a dimensão de como ele goza. Voltando à lição de 19/01/1972 do seminário XIX, Lacan comenta que, se o animal enche a pança regularmente, fica muito claro que é por não conhecer o gozo da fome. Ele foge do gozo da fome. No humano é o oposto. Aquele que fala, colore todas as suas necessidades, se defendendo da morte. Nem por isso, diz Lacan, se deve crer que o gozo sexual seja a vida. Chama a atenção de que esse gozo é uma produção local, orgânica, acidental, centrada no que vem a ser o órgão masculino, assinalando que a detumescência no macho gerou um apelo à linguagem articulada, introduzindo, a necessidade de falar. É daí que brota, portanto, a necessidade lógica como gramática do discurso.
Do sentido de uma prática
Margarida Elia Assad
A leitura do Seminário 19 de Lacan nos instiga a pensar no sentido da prática psicanalítica: aonde levamos um paciente na experiência de uma análise? De onde parte seu sofrimento? De que ordem é esse sofrimento, será efeito de uma significação enigmática do Outro, será de uma marca de gozo em seu corpo? Analisamos um sujeito ou um corpo? O que é a prática de um analisante, um dizer ou uma fala?
Enfim, essas são pontuações sobre a ética da prática psicanalítica que Lacan aborda a partir do que significa afirmar que ‘Há-um.’
Vou procurar fazer meu comentário na vertente do que Lacan desenvolverá sobre o saber do analista a partir daí. Em que medida o dizer: Há-um produz uma prática única que teve sua origem na descoberta freudiana da não igualdade sexual? Quais as consequências desta descoberta para o desejo do analista?
Essa falta de proporcionalidade entre os sexos é própria do ser que fala, uma vez que o significante inscreve, num corpo, a marca da castração. Essa marca do significante, pergunta Lacan, resultaria de uma falha da linguagem em poder inscrever um todo? Lacan nos leva em outra direção. O Há- um não é um significante qualquer, mas aquilo que resulta da não relação sexual, ou seja, da negação do dois. O Um que Lacan aborda não é aquele que antecede ao dois como em uma série numérica, mas aquilo que o separa definitivamente do dois, um abismo.
Esse Um marca, no homem, o sentido de uma existência como exilada da proporcionalidade entre os sexos. Há um é uma afirmação, uma positivização do gozo, o que é diferente do ao menos-um do gozo em Totem e Tabu. Por isso, Lacan nos traz as quatro fórmulas que inventa para lidar com a pretensa relação sexual. Com elas, Lacan procura retirar, do campo do simbólico, o lugar da existência.
A existência decorre do real, e este só é abordado pela matemática, afirma Lacan. É através dela que podemos intuir o que é o Um considerado como o Um da diferença frente ao outro. Não o Um da individualidade atributiva do homem, mas o Um que o distingue mesmo dentro de uma mesma ordem de atributos.
Para Lacan, esse Um fundante do falasser o especifica, também, na sua posição sexual. Mas aí reside uma enorme problematização lógica que extrapola os limites deste comentário.
Gostaria de retornar ao que penso se articular, a partir daí, ao sentido de uma prática. Esse Há-um é, para Lacan, a verdade do saber com que o analista lida em sua prática. Como todo ofício, o do analista requer um saber. Trata-se de um saber de uma verdade, é o que particulariza sua prática. Ele lida com uma verdade. Mas qual? De que estatuto é essa verdade? Para Lacan, é uma verdade lógica, sem essência. Uma verdade imposta pelo significante Um sem par, sem significação. Uma verdade que se inscreve no corpo marcando-o como gozo. Um corpo afetado pelo significante, eis o saber com o qual a parceria analítica se instala. Esse saber carrega uma verdade cuja ferramenta, para abordá-la, não pode ser somente uma fala, mas um dizer.
Para alcançá-lo, Lacan redefinirá o falo cada vez mais. O falo – essa falácia que testemunha do real – dará a garantia a esse saber sobre a verdade, pois ele dá o suporte de significação necessário a que o Há-um sem par, sem Outro, sem inconsciente, torne-se um dizer, uma práxis para o discurso analítico. Essa significação atesta a verdade através do signo e não pelo deslizamento significante. É o signo, sempre o mesmo, marca de um gozo que se repete, a implantação de uma rigidez.
Que saber tem o analista, então? O saber que ele porta só poderá ser o que resulta de sua própria experiência com seu dizer. Não há como formular o saber com que lida um analista. Não há como garanti-lo. A Escola de Lacan formulou assim o passe para atestar que há, ali, um saber. E não somente um analista; o que se demonstra pelo passe é a existência de uma verdade sobre uma parceria com o real. O saber é múltiplo e rico, uma fonte inesgotável de parcerias, uma poluição ! Podemos dizer, então, que o saber do analista é a poluição do objeto a resultado do indecidível entre o Há um e a existência do ser como sexuado.
_______O Seminário Livro 19. Zahar. 2012. RJ. “... a poluição mais característica deste mundo é, exatamente, o objeto a de que o homem extrai sua substância...”P. 210.
CAPÍTULO XI – HISTÓRIA DE UNS
TEMA I – O DISCURSO DO ANALISTA
Lacan retoma seus avanços sobre a estrutura dos discursos, ressaltando, por sua vez, a posição do significante e a dose de gozo implicados nos efeitos do discurso. Ora, no presente capítulo, o discurso do analista é articulado justamente à existência do Um [Yad’lun]. A operação do discurso do analista repousa como Lacan evocará neste capítulo, sob a convergência de um significante e a reprodução deste a partir do que foi sua eflorescência. Nesse contexto, após expor a estrutura da teoria dos conjuntos (Cf.: Cantor), Lacan a articula ao discurso do analista pontuando o Um como princípio da repetição, marcado pelo Um da falta, de um conjunto vazio. Tal repetição está presente justamente no fundamento da incidência no falar do analisando.
Lembremos que, tal como desenvolvido por Lacan em seu seminário do ano seguinte, o Seminário XX. (Cf. Séminaire Livre XX. Encore, lição de 12 de dezembro de 1971. P.14), o discurso do analista se sustenta a partir do enunciado que não há, de que não há relação sexual, da não existência da relação sexual (Cf. Jacques-Alain Miller, L’Un tout seul, aulas 6, 7 e 8).
Referências na obra de Lacan
Séminaire Livre XX. Encore (1972-1973). Paris : Seuil, 1975
Jacques-Alain Miller :
L’un tout seul. Cours d’Orientation lacanienne. Aulas 6, 7 e 8. Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, 2011.
TEMA II – SE NÃO HÁ RELA?ÃO DOS DOIS, CADA QUAL CONTINUA A SER UM
A - O SEXO REAL/DUAL
Ao se referir a George Berkeley e a seus argumentos idealistas empíricos, Lacan evoca a representação, ou seja, o mundo tal qual o sujeito o representa, como ponto central do esquema berkeliano. (Cf. : Séminaire Livre XVI. D’un Autre à l’autre, lição de 30 de abril de 1969). Para tal, a fórmula berkeliana “ser é ser percebido” pode ser aqui articulada com a representação do sexo real/dual pelo fato desta não ter sido justamente enunciada por Berkeley em seu sistema de entendimento.
Neste contexto, Lacan refere-se aos avanços da biologia celular e da microbiologia do Século XVIII no que tange aos estudos dos gametas, justamente aquilo que é da ordem da diferença das células sexuais e erroneamente articulada com a suposta existência da relação do dois, isolando, por conseguinte, o Um da falta. Paralelamente, refere-se a Freud e suas pontuações sobre a força fundadora da vida, o princípio de união (Cf., Freud) questionando, neste sentido, a suposta existência da relação sexual.
Referências na obra de Lacan
Séminaire Livre XVI. D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006. Lição de 30 de abril de 1969.
Sigmund Freud
Malaise dans la civilisation (1927). Paris: PUF, 2004.
L’avenir d’une illusion (1929). Paris : Payot, 2010.
Autores citados:
George Berkeley (1685- 1753): irlandês, membro do clero anglicano e filósofo empirista, elaborou sua teoria imaterialista a partir do princípio de que as coisas são conhecidas apenas como ideias, representações. Com sua fórmula, “ser é ser percebido” , Berkeley concebe o mundo como objeto de percepção, sendo este mundo concebido como obra de Deus. Em Principes de la connaissance humaine (1710), o autor desenvolve o que é chamado de filosofia idealista empírica.
B - O UM COMO REITERAÇÃO DA FALTA
Lacan, servindo-se da teoria dos conjuntos e de um de seus aspectos, o conjunto vazio, { }, desenvolve aqui o Há-um [Yad’lun]. Na teoria dos conjuntos, dois conjuntos são iguais se eles contêm os mesmos elementos. Consequentemente, há apenas um conjunto que não contem nenhum elemento, o conjunto vazio. Logo, um conjunto vazio equivale à diferença radical. Desta forma, como exposto anteriormente, a função do Um aparece aqui articulada com a falta e com a diferença. “O Um surge como que do efeito da falta” (Cf. Seminário Livro 19...ou pior, P.153) ou ainda “O Um, saído do conjunto vazio, seria então a reiteração da falta”. (Cf. Seminário Livro 19...ou pior, P.156). Teríamos, assim, a mesmice da diferença ou ainda a reiteração da falta. Neste contexto, poder-se-ia ressaltar o título do capítulo estabelecido por
Jacques-Alain Miller, A história de Uns, articulado com: O Um, como reiteração da falta, é o Um da diferença.
Jacques-Alain Miller
L’un tout seul. Cours d’Orientation lacanienne, aulas 6, 7 e 8. Departamento de Psicanálise da Universidade Paris VIII, 2011.
Autores citados:
Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor (1845-1918) foi um matemático alemão conhecido por ser o criador da teoria dos conjuntos. Ele estabeleceu a importância da bijeção entre os conjuntos, definindo os conjuntos infinitos e os conjuntos bem-ordenados. Ele provou, igualmente, que os números reais são mais numerosos que os números inteiros naturais. Com efeito, o teorema de Cantor implica a existência de uma “infinidade de infinitos”. Ele define os números cardinais, os números ordinais e sua respectiva aritmética. O trabalho de Cantor tem um grande interesse filosófico e resultou em diversas interpretações e debates. (Cf., na presente pesquisa, o leitor poderá se referir às leituras propostas no capítulo IX referente a Cantor).