Vossa excelência, data vênia, é ladrão! Eis um xingamento que, precedido da expressão protocolar de cerimônia do jargão parlamentar, bem ilustra o que Zuenir Ventura, citando Otavio Paz, se refere: “...a corrupção dos costumes vem sempre acompanhada da degradação do idioma”. E acrescenta: ...“Quando uma sociedade se corrompe, a primeira coisa que se decompõe é a linguagem. A degeneração de uma é também da outra”4.
A acusação aludida acima foi enunciada no ambiente do Congresso brasileiro, que ultimamente tem sido palco de encenações que beiram a pornografia e é uma clara alusão a um caso de contravenção semântica – “o idioma foi reduzido a um nível quase animal... no bate-boca eles perdem totalmente o sentido” – conclui Zuenir Ventura.
A esta observação se alinha também o escritor israelita, Amós Oz (2017), ao testemunhar que em suas obras o que lhe move é principalmente uma responsabilidade para com a linguagem e afirma: "Muitos dos maiores males deste mundo começam com a corrupção da linguagem"5.
Diz Amós: “Em minhas obras, o que me move é principalmente uma responsabilidade para com a linguagem. Eu sou um escritor, trabalho com palavras todos os dias, do mesmo modo que um carpinteiro trabalha com a madeira ou um pedreiro com tijolos. Assim, eu sinto uma responsabilidade para com a linguagem... é meu dever gritar a cada vez que vejo alguém usando uma linguagem contaminada. Quando algumas pessoas chamam outras de ‘estrangeiros indesejáveis’, ‘elementos negativos’, ‘câncer social’ ou ‘parasitas’, sei que é sempre aí que começa a violência, a perseguição e a crueldade. Daí meu senso de dever de trabalhar como o corpo de bombeiros do idioma, ou como um detector de fumaça... eu preciso gritar fogo! – sempre que leio ou ouço essas palavras que, mais cedo ou mais tarde, vão gerar violência”6.
Estas posições são compatíveis com a predição de Italo Calvino (1998): “A literatura pode criar os anticorpos que coíbam a expansão da peste da linguagem”7.
Mas, é a invenção técnica de Freud, a “associação livre”, que coloca a psicanálise no âmbito da linguagem rompendo com as convenções e infringindo as regras do raciocínio.
São, portanto, duas abordagens distintas: há uma corrupção dos costumes que degrada a linguagem e há uma corrupção estrutural da linguagem.
Para a psicanálise é mais apropriado o uso do sintagma “corrupção da linguagem”, que não passa desapercebido aos nossos ouvidos. Ele bem diz sobre o que está no cerne do trabalho analítico – a impossibilidade de ser incorruptível quanto à própria fala. Há entre o dito e o dizer uma ruptura estrutural que não se apaga e que pode ser lida. A corrupção da linguagem é no dispositivo analítico a condição para um falasser se reconhecer onde se desconhece e tomar partido daquilo que lhe ultrapassa e ao mesmo tempo lhe atravessa. O sujeito em análise se responsabiliza quanto ao dizer e em relação ao seu modo de gozo. É uma posição diferente de quem se considera incorruptível que, necessariamente se coloca como exceção da regra, pregador do retorno à purificação e à virtude, como aquele que sabe sobre o bem dos outros.
Lacan, em 1955, faz uma afirmação que toca o nosso tema: “A maior corrupção de todas as corrupções é a corrupção intelectual”8. O contexto da frase era sua proposta de um retorno a Freud face aos desvios que os pós-freudianos estavam perpetrando. A importância de retornar à obra de Freud estava alicerçada pela lógica e a ética e ele se posiciona contra a corrupção intelectual. E isso teve consequências! – E como!
Um pouco antes, em 1953, Lacan dizia que "deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época"9. Foi a reiteração a Freud, que associava a psicologia individual como inseparável da psicologia social e concebia a neurose como uma resposta do sujeito à renúncia pulsional devido às exigências da cultura na modernidade.
Este é o mote que nos une na atualidade. Não há como retroceder frente a avalanche de eventos sociais que elencam fatos constrangedores de corrupção que comprometem os laços sociais e podem ameaçar o estado de direito. A psicanálise, cuja prática é do um a um e que implica a liberdade de expressão, a palavra livre e o pluralismo, portanto tem uma mão no social, não deve se manter às margens das mudanças impostas pelo programa de gozo da civilização. Se impõe então, responder ao discurso universal que submete o cidadão à lei da norma para todos.
A Psicanálise é um laço social, portanto um tratamento do gozo e, neste sentido, está relacionada a política. A experiência analítica propõe elucidar a relação do gozo e o laço social. Trata-se de modificar a relação que o sujeito tem com a linguagem – mais especificamente, com o significante-mestre –que determina as modalidades dos laços sociais e tem relação com o gozo. É isso que dá ao analista o dever político de devolver ao sujeito a escolha decidida dessa relação com o significante-mestre10.
Pensar a corrupção da linguagem desde essa perspectiva é um caminho de, em última instância, fomentar uma relação com a linguagem que incite o bem-dizer. É uma forma diferente de abordar a corrupção.
Este é o nosso desafio: enquanto clínicos tratar a linguagem, isto é, tratar o império do S1 e o gozo e, por outro lado, em relação ao Outro social, recusar os modos estabelecidos de gozar. É o viés político: é primeiramente querer as condições materiais para o exercício da psicanálise e também por em questão os ideais da cidade e da política dominante.
O movimento Doces&Bárbaros contempla esta política. Nós temos responsabilidade para com a linguagem e o social e nos posicionamos contra o comando único do político, do social, do econômico e do religioso. Queremos ter voz na política e estar atentos para gritar, a qualquer momento: fogo!