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Corrupção e culpa estão na ordem do dia, e, como dizem os slogans das faixas de rua: “Os corruptos deverão ser punidos...”.
Vemos toda uma nação mobilizada por esse fenômeno, cada vez mais insidioso no meio politico, que não é uma particularidade deste país e tampouco um fenômeno novo. Se a corrupção está colocada a descoberto, em nossa atualidade, é por razões mais contingenciais do que estruturais. Quer dizer, a corrupção está ligada inexoravelmente ao humano e se ela se apresenta mais ou menos alarmante, significa que há fatores que contribuem para isso.
Interessa-nos colocar em destaque as relações entre o fenômeno da corrupção e a culpa.
Para tanto, valho-me de um pequeno texto de Miquel Bassols, atual presidente da AMP, que leva esse mesmo título, publicado em Lacan Cotidiano n. 366, de 8 de janeiro de 2014, e também no suplemento de cultura do jornal espanhol “La Vanguardia”, em 5 de março do mesmo ano. A brevidade do texto não o torna menos complexo, pois o que está em jogo é precisamente esclarecer as relações entre os dois termos – corrupção e culpa. A complexidade dessa relação repousa inicialmente no fato de que não é evidente, à luz da hipermodernidade, haver uma relação de continuidade entre um e outro termo; ou seja, tenderíamos a conceber a inexistência do sentimento de culpa relacionado à corrupção, na medida da ineficácia hoje observada nos semblantes da lei. Entretanto, se o cinismo que no mais das vezes acompanha a corrupção poderia demonstrar justamente a inexistência do Outro, veremos que a lógica demonstra, antes, um paradoxo.
Para ilustrar esse paradoxo, Bassols lança mão de uma anedota contada pelo humorista americano Emo Philips. Diz ele: “Quando eu era pequeno, rezava todas as noites para ter uma bicicleta. Certo dia me dei conta que Deus não funciona assim, de modo que roubei uma e rezei para que fosse perdoado”. Ora, é preciso, para que a corrupção aconteça, supor não só a existência de um Outro, mas também seu funcionamento; quer dizer, esse Outro não entrega o objeto desejado pelo simples ato de pedir, porém se a bicicleta se torna realidade, seu preço será o pedido de perdão implicando de maneira direta a existência do sentimento de culpabilidade como moeda de pagamento.
O Deus da criança da anedota “funciona” na medida da existência de um pecado, de uma culpabilidade, que o fazem existir. Poderia ser também um Deus que faz a exigência do sacrifício. No caso, não haveria, supostamente, a necessidade do roubo, já que a moeda se condensa no próprio sacrifício como modo de expurgar o sentimento de culpa originário.
Entretanto, essa outra modalidade divina, modulada pelo sacrifício e pelo desejo, implicaria a “honra” e, como consequência, a “vergonha”, como explicitado por J.-A. Miller em “Nota sobre a vergonha”, publicada em Opção Lacaniana n. 38, a partir das referências do Seminário 17, “O avesso da psicanálise”, onde Lacan declara que “estamos no ponto em que o discurso dominante determina que não se tenha mais vergonha de seu gozo. Do resto, sim. Vergonha de seu desejo, mas não de seu gozo”.
Esta segunda modalidade de Outro, do desejo, da honra e da vergonha, na verdade é primeira, no que diz respeito à tradição. A “honra” implica em sustentar, para além da morte, um nome que representa o sujeito mais além de sua existência: um sujeito sustentado, então, por um nome que o designa no laço social.
Pois bem, na medida em que tal sustentação sofreu abalo e queda pelo avanço do capitalismo, assim como o serviço que a ciência presta ao capital – ressaltemos, contudo, que não é a ciência em si, mas sua incidência no discurso servil ao capital que desvela a face obscura desse Outro, o qual jogava com a “vergonha” como um afeto primordial ligado ao gozo. Morrer de vergonha trazia a verdade desse Outro onde a vida podia ser dada em nome da honra.
O reverso disso é precisamente o “direito ao gozo”, cujas nuances estão presentes no mundo atual, com as consequências políticas que estamos testemunhando e que dão as balizas do mal-estar na civilização.
Voltemos então ao menino e à bicicleta da anedota de Emo Philips que, guardadas as devidas proporções, mostra, segundo Bassols, o paradoxo que liga “culpa” e não “vergonha” e corrupção. Vemos que a escolha feita implica a culpa que retorna na necessidade de pedir perdão. Um circuito, portanto, que se auto alimenta. A questão então é colocada sobre o destino da culpa. Para aproximarmos essa lógica, como uma espécie de resto do que sobrou do Outro da honra e da vergonha, tornam-se necessárias duas observações:
1 – Vergonha e culpa não se superpõem – J.-A. Miller faz disso inclusive um pressuposto – justamente na medida em que não há Outro que possa redimir a vergonha, senão a morte. Enquanto a culpa é suposta fazer existir um Outro da indulgência e do perdão. Quer dizer que a culpa, em si mesma, entra no circuito das trocas; é a moeda cobrada pelo gozo.
2 – A reciprocidade do direito ao gozo, referida por Bassols, entendida como “se um pode, o outro também pode”, que estabelece então uma modalidade de laço social permeado pela identificação e avalizado pela certeza do perdão.
É, pois, na certeza do perdão que o circuito se perpetua.
Localizando um pouco mais de perto o problema da corrupção em nosso país, testemunhamos cada vez mais o tratamento que tem sido dado...não entrarei em detalhes desnecessários, mas podemos nos perguntar sobre a orientação desse tratamento e a partir daí, vislumbrar onde podemos chegar.
Coloco, portanto, na forma de pergunta: a judicialização da política pelo menos amenizará a problemática da corrupção?
Ora, a justiça, seguindo o paradoxo esclarecido por Bassols, se oferece como a encarnação daquele que condena e absolve, por um lado, ou seja, o judiciário torna-se, em plenos poderes, o Outro que faria valer a culpabilidade; por outro, a disseminação do gozo da corrupção afeta os laços sociais na medida em que se torna um espetáculo cotidiano que já é esperado!
Ou seja, o gozo se distribui na sociedade, ainda que em nome de sua extirpação. Desse modo, fecha-se o circuito em cuja repetição se extrai, talvez, a gestação de um poder que não ousaríamos, aqui, arriscar um prognóstico, senão sublinhar o valor de sintoma que está aí em jogo. O desequilíbrio de forças entre os três poderes, evoca um sintoma que, a nosso ver, merece ser destacado mais além das paixões que circunscrevem os prós e os contras; assim como, advertidos do real que resiste, não nos deixar sucumbir por tal paixão. Se a psicanálise vai até a política, não é para escrever um ideal a mais, mas, ao contrário, para ler o sintoma que aí se inscreve.
A bicicleta acaba por se corroer, o perdão ou a condenação não a faz advir como o objeto satisfatório; sendo assim - entregaremos a democracia para sufragar a culpa pelo silêncio?
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