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Escolhi falar neste primeiro Fórum da Movida Zadig, Doces&Bárbaros, da “zona cinzenta”, conceito que poderá nos ajudar a pensar alguns fenômenos decorrentes da degradação do político, em escala não apenas nacional, mas também mundial. A corrupção é apenas um entre esses fenômenos, e parece ter menos o estatuto de causa, que de consequência dessa degradação mais ampla e generalizada da política e do político nos dias de hoje.
O termo “zona cinzenta” vem sendo usado na atualidade em diferentes análises que tocam o campo da política, ainda que nem sempre com o devido rigor, e muito raramente mencionando sua autoria. Esse conceito é da lavra do escritor italiano e sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi, e foi inicialmente concebido para designar a complexa rede das relações no interior dos campos de concentração nazistas.
Em seus primeiros escritos, especialmente naqueles de cunho testemunhal, a menção ao “cinzento” esteve frequentemente presente como figura de linguagem e intuição poética, como tentativa de colocar em palavras aquele “mundo terrível e indecifrável” no qual o próprio escritor, entre milhões de judeus, foi confinado durante a Segunda Guerra Mundial. Somente em seu último livro, Primo Levi veio a conceber a “zona cinzenta” como o conceito que se tornou ao longo dos últimos anos uma ‘chave de leitura’, ou seja uma ferramenta que abre as portas para novas possibilidades de interpretação de uma gama de fenômenos nos campos da ética e da política3 .
Mas então, em que consiste a “zona cinzenta”? Trata-se de uma zona de contornos mal definidos (Levi, 2004, p.36), formada, naquele contexto, pelos prisioneiros dos campos de concentração nazistas encarregados de auxiliar no processo de extermínio dos judeus, transportando os cadáveres dos prisioneiros das câmaras de gás venenoso para os fornos crematórios, com o objetivo de eliminar qualquer vestígio daquela atrocidade, pois finda a guerra, isso levaria os alemães a serem acusados e condenados por crimes de guerra.
Desta maneira, o nazismo delegou às próprias vítimas uma parte do trabalho indispensável ao funcionamento da indústria da morte, transferindo para elas o peso do crime.
Levi dedicou à zona cinzenta um pungente capítulo do livro Os afogados e os sobreviventes (1986). Ele nos diz que quanto mais atroz for a opressão, tanto mais se apresenta uma disponibilidade de colaboração com o poder, impulsionada por motivações as mais diversas: a luta pela sobrevivência, como uma tentativa de resistir ao terror, pela ambição por um pequeno poder, ou ainda como estratégia para escapar da tirania do regime imposto. O escritor nos adverte, entretanto, que em situações como essa, é imprudente precipitar-se em um juízo moral, pois é preciso ter em conta o que significa agir em circunstâncias extremas e sob a máxima coação, ou seja, em condições nas quais o espaço para as escolhas inexiste. Em tal conjuntura, vê-se conjugar fenômenos que em outas situações pareceriam improváveis, como por exemplo, a corrupção ao mesmo tempo e concomitantemente ao excessivo obséquio à norma, cujo exemplo mais expressivo foi nomeado por Hannah Arendt, a propósito da obediência cega à máquina nazista por parte de seus operadores, de banalidade do mal (Arendt, 2016, p.310).
De que tipo de corrupção estamos falando quando se trata do fenômeno totalitário? É notório, já de entrada, que não estamos falando de corrupção tal como ela se dá em regimes políticos democráticos, caracterizada por desvios de conduta visando obter vantagens ilícitas de todos os tipos. A corrupção que se dá sob a égide dos regimes de exceção corrompe, de entrada, os padrões normativos e jurídicos que orientam as práticas políticas próprias às democracias, tais como as distinções entre Estado e sociedade civil, pautando rigorosamente suas ações pelas leis que auto promulgam, alterando também o próprio conceito de legalidade. Um exemplo disso foi a promulgação das leis raciais pelo nazi-fascismo. Desse modo as fronteiras entre a exceção e a regra, entre a política e a biologia, vão se apagando, até chegar por meio do biopoder a serviço do extermínio, à corrupção daquilo que é propriamente humano, a transposição do umbral entre a vida e a morte, a separação absoluta entre o ser vivo e o ser que fala (Agamben, 2008, p.156). Quando se chega a esse ponto, “já não existe vontade; cada pulsação torna-se contração reflexa dos músculos destruídos... Dez mil prisioneiros e uma única máquina cinzenta; estão programados, não pensam, não desejam. Apenas marcham” (Levi, 1988, p.50).
O paradoxal, quando se trata da corrupção própria ao universo concentracionário, é que para se manter vivo naquele mundo monstruoso, amoral e aniquilador, a moralidade e a obediência conduzam, invariavelmente, à morte. Para sobreviver, era preciso praticar pequenos delitos. Eis o relato de Levi: “quinze dias depois da chegada, se vejo uma colher, um barbante, um botão dos quais consiga tomar posse sem risco de punição, embolso-os, considero-os meus, de pleno direito” (Levi, 1988, p.35). Sucumbir é mais fácil, bastando para tanto executar cada ordem recebida, comer apenas a ração que lhe é destinada e obedecer a disciplina do trabalho. Assim, ele conta de Elias: “Elias era ladrão. Nunca foi apanhado porque só roubava se aparecesse uma oportunidade segura. Cada vez que essa oportunidade aparecia, ele roubava. De nada serviria castigá-lo por seus roubos, pois eram para ele um ato tão vital quanto respirar e dormir. No campo, Elias prosperou e triunfou. Era bom trabalhador e sabia se safar. Conseguia se livrar das seleções para a câmara de gás e era respeitado por seus chefes e companheiros. Elias sobreviveu. Era fisicamente indestrutível e demente. Ele era um homem feliz “(Levi, 1988, p. 98-99).
Levi defendeu, enquanto viveu e até seus últimos escritos, a tese de que entre o campo de concentração e a vida cotidiana transcorrida em sua banal regularidade, não havia abismos instransponíveis, mas pontos de torção e de cruzamento. Em 1974, passados trintas anos do fim da guerra, Levi publicou um artigo intitulado “Um passado que acreditávamos não mais voltar”, que diz o seguinte: “Cada época tem seu fascismo e a isso se chega de muitos modos, não necessariamente com o terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana, e a segurança dos poucos privilegiados se nutria do trabalho e do silêncio forçado da maioria” (Levi, 2016, p.53-56).
Sabemos que as sociedades democráticas não são monolíticas. E que é preciso manter certas condições ‘de temperatura e pressão’ para que não a coloquemos em risco. Isso não quer dizer que aí não existam brechas e paradoxos, que são, aliás, vitais para a democracia. Um dos paradoxos do estado democrático de direito é aquele entre o poder constituinte e o poder constituído, ou seja, entre democracia e legalidade. O intervalo entre ambos não se esgota em suas representações, por isso, para que a democracia não seja posta em perigo, é preciso resistir à hegemonia do pensamento único, rejeitando firmemente o apelo a uma unidade totalizadora entre o representante e o representado. É sabido também que a política é um ofício marcado pela contingência, e que é preciso tomar decisões em um horizonte de incertezas. Isso quer dizer que no interior da convivência democrática existe um “nós” inconsistente, uma fratura e uma contradição que redefinem continuamente as dimensões da inclusão e da exclusão (Innerarity, 2017 p.69-70).
Hoje, mais do que nunca, me parece que a corrupção encontre na própria fragilidade da política em “tempos líquidos” (para retomar a expressão de Z. Bauman), suas raízes mais profundas. Esperar que a punição dos corruptos por si só coloque o país novamente nos trilhos e que seja a solução para todos os impasses da democracia não mascararia os verdadeiros problemas, e mesmo, os paradoxos que se apresentam hoje no campo da política?
A atual fragilização da política acaba por favorecer à simplificação e banalização do real em jogo, por meio das distinções polarizadas, onde haveria lugar apenas para heróis ou vilões, triunfos ou fracassos, inocentes ou culpados, dominadores ou dominados, proliferando e interpretando as tensões que se apresentam em temos binários, o que torna ilegível tanto sua complexidade, quanto a construção de saídas que não sejam igualmente simplistas, tornando inviável por exemplo, o exercício da extimidade.
Outro paradoxo, dessa vez explicitado por Claude Lefort (1983), reside no fato de que o lugar simbolicamente vazio do poder, que emana e é legitimado pelo povo, não poderá ser apropriado por ninguém (p.75-77). Sob esse paradoxo vive e respira o estado democrático de direito, que estará em perigo todas as vezes que esse lugar vazio se veja obturado. Isso acontece quando o lugar simbolicamente vazio do poder é confundido com quem detêm a autoridade. Foi o caso de Hitler, Mussolini e Stalin, e de tantos outros ditadores que floresceram no século XX. Isso poderá acontecer também quando se denegam as divisões internas aos poderes, resultando em uma indiferenciação das instâncias que regem politicamente a sociedade. Ou seja, quando os paradoxos, que se fundam nas diferenças, se transmutam em zonas cinzentas. Ou ainda, nas situações em que o poder deixa de se constituir como um lugar simbolicamente vazio em nome da qual se governa, para se apresentar como realmente vazio, situação em que os governantes passam a ser percebidos como elementos de facções a serviço de um grupo de interesses, vendo sua legitimidade sucumbir em todas as extensões do tecido social, até que, no limite, já não se sustente uma sociedade propriamente civil. Antes de sua total corrosão, a sociedade se vê polarizada entre a defesa de um estado permissivo e rendido a grupos de interesse; e o brado por um estado igualitário e consubstancial à sociedade, que falando em seu nome venha a encarnar o corpo social de forma una e coesa, o que conduz ao apagamento do sujeito. Com essa polarização, nutre-se de ambas as partes o ódio à diferença, que por sua vez, gera isolamento, intolerância e segregação. Assim, a violência avança sem trégua e o laço social se fragiliza, chegando, às vezes, à ruptura.
A política é um ofício da palavra por excelência, sua ação se dá por meios linguísticos e é sensível à inexatidão da linguagem. “Quando se deixa de falar, a política acaba” (Innerarity, 2017, p.98). Hoje mais do que nunca, cabe lembrar, com Freud, os três ofícios impossíveis: educar, psicanalisar e governar. É justo nesse ponto -- guardadas as diferenças e especificidades de cada um destes campos, que não são poucas, desde a causa que os move até as suas finalidades -- onde encontramos as maiores afinidades entre a psicanálise e a política: no impossível que as atravessa e as convoca.
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1 Texto apresentado no Fórum Estado de direito e corrupção. O real da psicanálise é a nossa moeda - LA MOVIDA ZADIG (Brasil) - Movimento Doces&Bárbaros, em São Paulo, 18/08/17.
2 Psicanalista, psicóloga, doutora em Estudos Psicanalíticos/UFMG; Mestre em Filosofia/UFMG, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e Associação Mundial de Psicanálise.
3 É assim que em O que resta de Auschwitz,o filósofo Giorgio Agamben se refere à zona cinzenta: “... ele conseguiu isolar algo parecido com um novo elemento ético. Levi denomina-o de zona cinzenta. Ela é aquela da qual deriva a ‘longa cadeia de conjunção entre vítimas e algozes’, em que o oprimido se torna opressor e o carrasco, por sua vez, aparece como vítima. Trata-se de uma alquimia cinzenta, incessante, na qual bem e mal, e com eles, todos os metais da ética tradicional alcançam seu ponto de fusão” (p.30).
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