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1. A corrupção como inerente à vida civilizada
O conceito mais antigo de corrupção é aristotélico: phthorá. Ele define a mudança que vai de algo ao não ser deste algo - a dissolução do que é vivo - e se encaminha para a morte. Na teologia, a corrupção é entendida como o pecado, aquilo que se desvia do alvo: Deus. A corrupção inicial se originou, segundo a Bíblia, das palavras da primeira criatura a falar no livro do Gênesis: a serpente Nahash. Seu nome quer dizer “brilhante”.“É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? (...) mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais” (Gn. 3: 2-3). O pecado original aparece, portanto, como sendo o da própria linguagem. Corrompida e corruptora ela ilude, decepciona, seduz. Por isso, segundo as Escrituras, ela é inerente à natureza do ser falante.
Do ponto de vista social, cientistas políticos, como Francis Fukuyama, consideram a causa da corrupção naturalmente vinculada ao impulso do ser humano de favorecer a si mesmo, à própria família e a seus amigos. Para o autor, a sociabilidade tem a forma específica do favoritismo como um instinto natural. Em nossa linguagem, poderíamos ler essa tendência no social decorrente dos nossos interesses narcísicos ou do privilégio dado aos objetos de nossos investimentos libidinais.
A tese de Orwell
Contudo, há outra perspectiva para pensarmos a corrupção. Veja-se a tese defendida por George Orwell no livro 1984, ao apresentar seu personagem Winston Smith: “Tudo o que o deixava entrever uma corrupção sempre o enchia de uma pequena loucura...”.
Para Orwell, nem os conflitos de interesses, nem o sexo, nem o dinheiro ou o poder eram corruptores, mas, sim, as ideologias e o ideal de regeneração. O combate de Orwell ao longo de sua vida foi o de arruinar a ignorância, a preguiça intelectual, as muralhas do pensamento convencional. Destaca-se da luta de Orwell a figura de um combatente, o Corrupto Heroico, o homem de exceção em relação a todo estado que reprima o pensamento herético. Cito: “Uma parte de mim não pertence à sociedade. Lutemos pela liberdade, que cada um tem, de conservar sua parte herética, sua parte judia, sua parte bruxa – uma parte de nós mesmos que uma sociedade num tempo decida ser corrupta”.
Vê-se que aqui que corrupção é sinônimo de heresia. Neste sentido, é proposto que o que uma sociedade decide ser corrupto deve sê-lo pelo Herói Herético.
A tese de Lacan
Lacan, em convergência com Orwell, atribui ao comodismo intelectual a causa da corrupção. Para ele, “O mais corruptor dos comodismos é o comodismo intelectual”. Na página 404 de seu escrito A Coisa freudiana, ele afirma ser este o motivo pelo qual os analistas imigrantes corromperam-se, na América do Norte, abandonando os princípios da psicanálise para se acomodarem à ideologia e ao contexto social do American way of life, evitando enfrentar suas diferenças culturais. Contudo, de acordo com um comentário de Miquel Bassols, em Lacan Cotidiano n. 366, o mais relevante nessa passagem é a indicação de que, para Lacan, a primeira corrupção é a corrupção da linguagem, ou seja, quando começamos a ceder sobre a significação das palavras que modulam e determinam a significação do nosso desejo.
Tanto para Lacan como para Orwell, a linguagem é que é corrompida, antes de tudo, e, assim sendo, torna-se aparelho de corrupção. Como resposta, vemos aparecer em Orwell o Corrupto Heroico, e, em Lacan, o Herético. Este último seria o homem capaz de fazer suas próprias escolhas e não ceder das suas ideias e dos seus desejos. Assim, por meio destas figuras, podemos notar um certo elogio à corrupção como necessidade de se corromper o que nos corrompe a fim de termos a chance de criarmos uma civilização onde as diferenças possam conviver.
2. A força dos objetos técnicos
Outro fator relevante para se determinar as características que a corrupção adquiriu na atualidade é o efeito de desregulação produzido pela introdução dos objetos tecnológicos na civilização.
A força dos objetos da tecnologia em nossa época produziu uma rede sistemática, endêmica e globalizada do fenômeno corrupção.
Aparelhada pelas linguagens computacionais, a globalização - segundo J.-A. Miller e citado por Bassols -, ao dissolver as fronteiras e tradições, também corrompeu as línguas, enfraquecendo o poder das palavras.
A novalingua orwelliana nos dá uma imagem dessa situação e de suas consequências, em um cenário em que um sistema tecnológico afeta a linguagem e pretende se tornar apenas informação.
Na obra 1984, a novalingua pretende acabar com as nuances, os mal-entendidos e com as palavras que se referem à sexualidade. Espera-se, assim, depurar a linguagem de toda significação pessoal e de todo equívoco subjetivo. Trata-se de transformar a comunicação em objetividade e informação e, desse modo, ocultar e silenciar o real. No enredo, os “funcionários da transparência” apagam significantes e falsificam registros históricos. A novalingua é uma ferramenta para que não se fale, nem se pense livremente. Criam-sepalavras como duplipensar - pensar diferente do partido - e crimeideia, referente aos elementos do discurso literário e filosófico que devem ser eliminados por serem considerados um crime.
A venda deste livro cresceu 10.000% segundo a Amazon desde a vitória de Donald Trump. Recentemente, Kellyanne Conway, chefe de campanha e conselheira da Casa Branca, cunhou o conceito “ fatos alternativos”, o que nos faz recordar a história de 1984: “O partido pede que você rechace o que seus olhos veem e o que seus ouvidos escutam”. Mas, em Oceânia, um dos três superestados ficcionais de Orwell, não foi possível eliminar a palavra corrupção.
Vemos, na realidade, esse funcionamento corruptor enraizar-se na realidade dos Estados. Redes cleptocráticas, capazes de processarem, esconderem e encaminharem ações silenciosas através do uso de sofisticados sistemas computacionais armados com todos os dados estatais, servem a interesses pessoais e partidários de enriquecimento. Algumas entidades vivem em setores piratas de grandes empresas corporativas e são até mesmo parceiras dos governos. São unidades hábeis em se moverem sem rastros pelo mundo legal, como espectros que desaparecem. Cria-se, assim, uma zona fantasmagórica, cinzenta e silenciosa. Um campo de crescimento de um novo tipo de totalitarismo que poderíamos chamar de “totalitarismo deep web”.
3. Um silêncio que não se escuta
Conhecemos o perigo para a psicanálise da imposição do silêncio pelos regimes totalitários. Mas aqui venho chamando a atenção para outros modos de se silenciar, talvez mais insidiosos do que o produzido pelo déspota, por serem inaudíveis. Há ainda outras maneiras por onde a corrupção se enraíza, criando situações geradoras de modos de silenciamento.
Primeiramente, vale lembrar que o corrupto Heroico, de Orwell, ou o Herético, de Lacan, precisa ser instruído, capaz de ter pensamento crítico e liberdade para fazer suas escolhas, situação que a miséria material e simbólica advindas da corrupção inviabilizam.
1) A corrupção produz pobreza e desigualdade social. Neste contexto, três situações emudecem: a fome, o medo e a ignorância.
2) A corrupção é um gatilho para regimes totalitários, na medida em que o povo supõe que governos autoritários poderiam vir a ter um desempenho melhor do que o das democracias corruptas.
b) Apesar da aplicação da psicanálise em diversos serviços públicos, uma economia muito precária talvez impeça a formação de psicanalistas, à medida que esta última depende de tempo e dinheiro para se realizar.
3) Por fim, este é um assunto que silencia a nós mesmos, psicanalistas. Apesar de vir estampada nos jornais, o que se diz sobre o assunto é sempre que a corrupção está no Outro.
Entretanto, é possível que nossa Instituição de psicanálise esteja em uma posição favorável para instituir essa discussão, pelo fato de termos uma suficiente independência em relação às influências e interferências estatais da política e também do setor privado. Penso que devemos nos posicionar, consentindo com a existência de um real ineliminável da corrupção, porém, redutível. Isso tornaria a corrupção excepcional e não sistêmica; esta viria a ser, antes, um resíduo da política.
Não podemos abrir mão da “nossa corrupção”, no sentido lacaniano, tampouco dos nossos significantes. “Doces e Bárbaros” é, pois, uma plataforma de enunciação. Que ela possa estar à altura do Corrupto Herético e do Herético de Jacques Lacan.
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